A denúncia como objetivo primário
Há alguns autores que, por razões diversas, caíram no goto dos editores e dos leitores nacionais. Miguelanxo Prado, com uma longa relação com o nosso país desde 1985, quando foi convidado do 1.º Salão de BD e do Fanzine, no Porto, pela sua inegável qualidade e pela relevância da sua obra no panorama da banda desenhada internacional, é um desses raros casos. Dessa forma, temos tido acesso a cada um dos seus novos trabalhos, em simultâneo ou quase com as edições originais. "Presas Fáceis - Abutres, numa belíssima edição da Ala dos Livros, é a sua obra mais recente.
Caso único na sua longa carreira, Prado decidiu retomar duas personagens, os inspectores Tabares e Sotillo, estreados em "Presas Fáceis - Hienas" (Levoir, 2016), para abordar um tema com tanto de sensível quanto de actual: a pornografia infantil e a pedofilia.
A primeira constatação, é a abordagem extremamente pudica levada a cabo por Prado, já que era fácil um descambar gráfico, mostrando o que pretende denunciar e embarcando involuntariamente na cadeia predadora que está em causa.
Porque, é isso que está em causa neste relato de tom policial, que abre com o aparente suicídio de uma adolescente ucraniana, acolhida por uma casal espanhol, sem filhos e bem na vida: as muitas ramificações que a pedofilia e a pornografia infantil assumem, atravessando transversalmente a sociedade, sem se ater a questões de idade, estatuto social ou capacidade financeira.
À medida que a investigação avança, de forma extremanente credível, com avanços, recuos e momentos de estagnação, os factos tornam cada vez mais abjecta a actuação dos diferentes intervenientes, sendo evidente o mal-estar que afecta os inspectores - e que o próprio autor também assumiu aquando da sua passagem pela recente Comic Con, pelos muitos meses que passou embrenhado no tema, durante a preparação e execução do álbum.
Por tudo isto, se nunca pode ser colocada em causa a qualidade do seu traço realista, no tratamento humano ou dos dos cenários urbanos em que "Presas Fáceis - Abutres" se desenrola, o superior uso de cor, sombras e volumes, e o argumento consistente, bem desenvolvido e incomodamente credível, torna-se evidente que é a denúncia de práticas obscenas e inqualificáveis que presidiu à concepção da obra.
Presas
fáceis - Abutres
Miguelanxo
Prado
Ala
dos Livros
Portugal,
Maio de 2024
235
x 310 mm, cor, 88
p., capa
dura
28,00
€
(versão revista do texto publicado na página online do Jornal de Notícias a 13 de Julho de 2024 e na edição em papel do mesmo dia; imagens disponibilizadas pela Ala dos Livros; clicar nesta ligação para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)
Sem comentários:
Enviar um comentário