Numa
Lisboa entre o real e o onírico
Há
bandas desenhadas - romances, discos, filmes... - que pela sua
qualidade intrínseca, obviamente, mas também pela importância
específica que tiveram no momento do seu lançamento e/ou do
contributo que tiveram para a evolução do género em que estão
inseridas,
porque marcaram momentos da vida cultural do país - do mundo... -
deveriam estar sempre disponíveis para aquisição, para fruição .
A
Trilogia
Filipe Seems,
de Nuno Artur Silva e António Jorge Gonçalves, que a ASA acaba de
reeditar para assinalar os 30 anos da sua estreia, é um desses
casos, principalmente no que respeita a Ana,
o álbum inaugural.
Publicada originalmente no jornal Se7e, tem como protagonista Filipe Seems, um detetive particular, que tem um gato com o qual passeia pelos telhados de Lisboa. Lisboa que, aliás, é co-protagonista da obra, como cenário da acção, numa visão futurista que inunda algumas zonas, transformando-a numa segunda Veneza.
Ambientada, aquando do seu lançamento, num futuro próximo, sensivelmente o nosso tempo atual, esta trilogia apresentava algumas curiosidades, como o uso de computadores ou de imagem digital, e abordava temas como a clonagem ou o terrorismo, que colocavam esta narrativa de tom policial, de alguma forma ao nível da antecipação científica. Se essa vertente se perde hoje, essa visão, hoje, não deixa de soar de forma incómoda, mas o relato mantém todo o interesse.
A narrativa arranca quando Seems é visitado por uma mulher, Ana Lógica, que lhe pede que encontre alguém, aparentemente ela própria, possivelmente uma gémea. Mergulhando na investigação, vão-se multiplicando as pistas, nem todas verdadeiras, a par de referências cruzadas, pensamentos e desvios, que obrigam o leitor a parar e pensar, numa história com muitas vias, realidades alternativas e mais perguntas do que respostas.
Esta (re)edição (com belíssimas capas novas), já de si muito aconselhável pelas razões explicadas no início, torna-se quase obrigatória mesmo para quem já tinha a versão original ou a que foi editada no início deste século, porque as técnicas actuais de fotografia e impressão permitem hoje desfrutar do traço fino e personalizado de A. J. Gonçalves como até agora só os seus originais possibilitavam e que brilha a grande altura na representação dessa tal Lisboa, entre o real e o onírico.
No segundo volume, A História do tesouro perdido, o protagonista avança nessa demanda sob a evidente sombra tutelar de Hugo Pratt e Corto Maltese, com a série - se assim se pode designar - a entrar cada vez mais profundamente no campo do onírico e da ilusão, vertentes acentuadas no terceiro tomo, A Tribo dos Sonhos Cruzados, marcado pelo hiato temporal em relação aos dois volumes precedentes e pelo corte profundo em termos gráficos e narrativos, com a nitidez e o realismo a perderem-se em favor de imaginário indefinido e muito aberto à interpretação e à capacidade de leitura, obrigando os leitores, como cegos, a tactear na indefinição gráfica, tentando ver para além das manchas que texto e desenho digital lhe apresentam.
Deste modo, esta trilogia é também um documento da evolução artística de Gonçalves, que se iria tornar patente ao longo da sua carreira na sua busca constante por caminhos e técnicas inovadoras, testemunhando aqui a sua passagem dos tradicionais tinta e papel para a imagem digital que, curiosamente, de alguma forma já era abordada na primeira narrativa de Filipe Seems.
Trilogia
Filipe Seems
Ana
A
História do Tesouro Perdido
A
Tribo dos Sonhos Cruzados
Nuno
Artur Silva (argumento)
António
Jorge Gonçalves
(desenho)
ASA
Portugal,
Maio de 2024
244
x 326 mm, 64
p.
(cada), cor, capa dura
22,90
€
(versão revista e expandida do texto publicado na página online do Jornal de Notícias de 21 de Junho de 2024 e na versão em papel do dia seguinte; imagens disponibilizadas pela ASA; clicar nesta ligação para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)
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