24/09/2024

O Segredo dos Mártires

Segredos escondidos com rabo de fora



Dentro da aposta continuada que a Penguin Random House, através do selo Iguana, tem vindo a fazer recentemente em autores portugueses de BD [e de cartoon], O Segredo dos Mártires é o primeiro a abordar uma narrativa de base histórica, com uma premissa que me agradou: revelar desde logo o final - um final...? - mas sendo capaz de mesmo assim surpreender o leitor.

[Como aparte referir que a publicação de autores nacionais num selo de dimensão internacional, pode ser uma porta aberta para divulgar essas obras e os seus autores noutros mercados, algo que a BD portuguesa raramente conseguiu.]

O livro marca o regresso de Jorge Mateus à banda desenhada, de novo com um argumento de Paulo Caetano - refazendo assim a equipa de Urso - que toma por ponto de partida o naufrágio da nau Nossa Senhora dos Mártires com o destino já à vista. Procedente da Índia, trazia no porão uma enorme quantidade de pimenta-preta, de valor inestimável e, algures na embarcação, um outro tesouro muito bem escondido e suposto segredo. Para além do capitão, dos oficiais de bordo e dos marinheiros, seguem como passageiros o vice-rei da Índia, amante da rainha de Portugal, e um jesuíta, dado a outro tipo de paixões, vindo do Japão, onde trabalhara na evangelização da população local, de regresso para angariar fundos para a sua missão.

Como condimentos - para além da pimenta-preta... - Caetano acrescenta uma evidente antipatia entre o vice-rei e o jesuíta, que pode ser encarada na dupla dimensão oposta de ateísmo/religião e igreja/estado, a cupidez de quem deveria viver despojado dos bens terrenos, o valor da amizade, do respeito e da dedicação, a vida dura a bordo de embarcações que passavam meses em alto mar e as terríveis tempestades e calmarias que se sucediam.

Tudo ingredientes de uma trama que, apesar do aparente fim evidente, reserva no seu final algumas surpresas.

Jorge Mateus, apresenta um traço semi-caricatural, esguio e muito dinâmico, trabalhado tanto em páginas em que se multiplicam as vinhetas como noutras de vinheta única, e com uma aplicação de cores quase sempre planas e de tom único (ou quase) em muitas pranchas, o que se nalguns casos consegue efeitos interessantes, nem sempre beneficia a legibilidade, obrigando por isso o leitor a uma atenção redobrada. Para esta falta de linearidade de leitura contribui igualmente o partir de alguns balões em choque com a divisão 'natural' das frases, bem como os tons excessivamente escuros de algumas páginas.

O contar do final logo no início, se pode desconcertar o leitor e até colocar alguns de pé atrás, pode por outro lado servir também para atiçar a sua curiosidade e torná-lo mais receptivo para descobrir como as coisas terminarão do modo que já lhe foi mostrado, ao mesmo tempo que tornam mais eficazes e compensadoras as surpresas que a obra vai proporcionar.


O segredo dos mártires
Paulo Caetano (argumento)
Jorge Mateus (desenho)
Iguana
Portugal, Setembro de 2024
170 x 240 mm, 160 p., cor, capa mole com badanas
18,45 €

(imagens disponibilizadas pela Iguana; clicar nesta ligação para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)

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