Depois de Jardim
Dos Espectros - e de outros títulos recentes de autores
portugueses - eis uma nova surpresa aos quadradinhos. Sofia Neto, na
sua primeira obra longa, surpreende pela forma como explora um tom
mais intimista - que de alguma forma lhe era expectável - combinado
com um registo de antecipação. E como diz tanto ou (aparentemente)
tão pouco.
[Não consegui
‘ler’ este Cicatriz sem desvendar demasiado do enredo; prossigam
por vossa conta e risco.]
Sabemos muito pouco
sobre o futuro apresentado e sobre o local em que a ação decorre,
mesmo após a leitura da obra. Podemos imaginar um cenário português
- pelos nomes dos intervenientes - e um futuro pós-apocalíptico -
embora desconhecendo os seus contornos. Só nos é revelado que
existe uma cidade, onde as pessoas são mantidas (mais ou menos) à
força, sob a imagem de uma aura de felicidade e sorte indefinidas, e
que existem sobreviventes, no exterior, que reaprendem a viver em
harmonia com a natureza, embora sempre sob a ameaça dos animais
selvagens que nela vivem, dos quais o mais perigoso é (sempre) o
homem. Entre eles, há os que se sentem confortáveis com a nova vida
e os que desejam voltar à cidade, atraídos por imagens esparsas de
passados melhores.
Diana, a
protagonista, saiu da cidade à procura de Salomé, uma exploradora
desaparecida. Entre elas existe uma relação de cumplicidade - ou
algo mais - embora seja muito o que as separa agora - ou apenas o
olhar mais alargada sobre a realidade e uma nova percepção que as
duas processam de forma diferente.
A busca, de
descoberta e iniciação, leva-a a cruzar-se com diferentes pequenas
comunidades, isoladas, divididas. O clima reinante é de medo, receio
do próximo e do desconhecido, sobrevivência a todo o custo, de
aplicação da lei do mais forte. Rumores, boatos, relatos dispersos,
contraditórios - dentro e fora da cidade - espalham a esperança
quase da mesma forma que a destroem.
Não vou contar mais
de Cicatriz - já ficou escrito demasiado - mas estas linhas
ajudaram(-me) a perceber - e ordenar? - o muito que Sofia Neto nos
disse em apenas 60 pranchas de banda desenhada. Melhor, o muito que
nos deixou intuir - na prática ela diz-nos mesmo muito pouco -
através de um relato impreciso e muito aberto, sobre equilíbrios,
relações e sobrevivência que, se pode ser lido apenas por si só,
poderá vir a fazer mais sentido se for integrado num todo maior -
entenda-se outros livros no mesmo registo - que nos revele outras
‘cicatrizes’, outras marcas que a vida - ou alguém por ela -
deixa (profundamente) em nós.
Como escrevi ontem
acerca de Jardim dos Espectros, de Fabio Veras, também Sofia
Neto - e os leitores - teria(m) ganho se tivesse havido um verdadeiro
trabalho de edição em Cicatriz. Na adequação da
(excessiva?) simplicidade gráfica e numa maior definição das
personagens, cujas semelhanças obriga, por vezes, a voltar atrás,
para nos assegurarmos de quem vemos.
Como em Jardim
dos Espectros, estes são aspectos menores no conjunto de uma
leitura que se recomenda, mas que poderiam ter elevado a obra a um
outro nível.
Cicatriz
Sofia Neto
Polvo
Portugal,
Junho de 2018
175 x 245 mm,
64 p., pb, capa dura
10,90 €
(clicar nas imagens
para as aproveitar em toda a sua extensão)
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