16/10/2018

Luís Louro: “Começa a existir uma tendência para o excesso e violação de privacidade”


Chega hoje às livrarias Watchers, o novo trabalho a solo de Luís Louro, que tem a particularidade de apresentar duas versões com finais diferentes.
A conversa com o autor já a seguir, antes da opinião de As Leituras do Pedro, a publicar amanhã.

As Leituras do Pedro - Afinal o ‘bichinho da BD’ não estava assim tão escondido no ‘baú das memórias’...?
Luís Louro - Verdade... Por vezes o difícil é ganhar motivação e endurance de novo. A paixão sempre estará cá...

As Leituras do Pedro - Foi o Jim del Monaco que te trouxe de volta àbanda desenhada. Recorda rapidamente como isso aconteceu e o que significou para ti.
Luís Louro - Bom, assim de repente... Recebi um pedido de entrevista do Diogo Carvalho. Disse-lhe que já não fazia sentido pois já não desenhava, mas ele insistiu e lá fizemos a entrevista... Na qual mencionei que o Jim iria fazer 30 anos e ninguém se iria lembrar... Ele destacou isso na entrevista e foi o “boom”, o Tozé viu, ligou-me a dizer que tínhamos de fazer algo nem que fosse uma mini história para comemorar, e assim tudo (re)começou...!

As Leituras do Pedro - Como reagiram os leitores ao regresso? Havia muitos saudosistas?
Luís Louro - Foi realmente uma surpresa... A quantidade de gente que apareceu a apoiar o regresso foi incrível... Também me surpreendeu a adesão de leitores mais jovens, pois afinal o Jim já é um clássico, apesar de os temas serem sempre atuais. Sensibilizou-me também o apoio ao meu regresso à BD, independentemente do livro, pessoas que nunca desistiram de mim, e que sempre acreditaram (mais do que eu na realidade...)

As Leituras do Pedro - E, já agora, vamos reencontrá-lo, à Gina e ao Tião, brevemente?
Luís Louro - Eu gostava, é um personagem que me é muito querido, mas posso avançar que o podem encontrar tal como o Tião neste novo projeto, escondidos algures numa ou noutra página em Lisboa.

As Leituras do Pedro - Mas quando muitos poderiam esperar novo Jim del Monaco, eis que surge Watchers. Porque não Vigilantes?
Luís Louro - Primeiro porque “Watchers” é um nome sonante, e é o nome dado aos utilizadores de uma plataforma internacional, o “People watching”, daí o nome em inglês fazer todo o sentido, depois porque tudo o que se relaciona com a internet, ou computadores raramente é traduzido como: site, post, net, Youtuber, blogger, selfie, etc... Dando origem inclusive a muitas palavras novas que vieram “colorir” o nosso léxico. Foi uma questão de seguir a tendência, uma vez que é isso mesmo que é criticado e realçado no livro.

As Leituras do Pedro - Era uma história que já tinhas ‘engavetada’?
Luís Louro - Curiosamente tinha tudo imaginado na cabeça há algum tempo em termos visuais, os ambientes, os veículos, as árvores a saírem das casas, os animais exóticos, muitas destas ideias refletem o que tenho feito em fotografia nos últimos tempos, mas não tinha a mínima ideia do que seria a história/tema.
Por vezes já termos todo um ambiente pensado facilita, mas também pode complicar, limitar a criatividade e criar pressão adicional... Mais uma vez foi algo em que andei a pensar durante uns meses sem grandes ideias ou resultados e quando já estava a desesperar... Surgiu-me tudo em catadupa!!! Comecei a escrever que nem um louco, as ideias surgiam umas atrás das outras, foi uma época frenética mas bem interessante do ponto de vista criativo. Depois foi uma questão de ordenar tudo de modo a fazer algum sentido.

As Leituras do Pedro - De forma resumida pode dizer-se que o protagonista de Watchers emula de alguma forma o Big Brother - segundo Orwell… Hoje em dia, somos mais ou menos perigosos que o sistema de vigilância descrito pelo romancista inglês em em 1984?
Luís Louro - Verdade, creio que começa a existir uma tendência para o excesso e violação de privacidade, os drones podem perfeitamente vir a ser um caso sério, as câmaras de vigilância já instaladas por todo o lado, os satélites, os telemóveis... Hoje em dia dificilmente podes fazer algo sem ficar registado. A questão é até que ponto tens noção disso?

As Leituras do Pedro - Achas que a actual tendência voyeur bem visível nas redes sociais e nas televisões pode chegar ao que imaginaste em Watchers?
Luís Louro - Claro que sim, as pessoas vivem nas/das redes sociais, dependem do número de gostos para respirar, da quantidade de “amigos”, tudo é mostrado, tudo tem de ser julgado, as redes sociais deram origem a juízes, carrascos, críticos, cultos, fações, ódios, paixões, etc... Ainda esta semana passou uma notícia sobre uma enorme quantidade de gente que se matou na tentativa de ir cada vez mais longe para conseguir uma selfie, pois então não é este o mote do “Sentinel”? O nosso personagem, para quem tudo o que importa são os seguidores e os gostos? De ir cada vez mais longe? A questão é: até quando estaremos seguros nas nossas casas?
Mantenham as janelas fechadas e as portas trancadas”!

As Leituras do Pedro - Na página 4, lê-se num dos balões: “...não interessa a história, o porquê, o como ou o onde… apenas o imediato e o superficial...” Esta é uma característica das gerações actuais? Onde é que esta ligeireza nos pode conduzir?
Luís Louro - Infelizmente esse é um padrão que se começa a desenhar... Tanto nos clips do YouTube, vines, etc... Tudo o que interessa é o imediato, ninguém quer saber o porquê, mas sim se as imagens são fortes e te transmitem alguma emoção e te conseguem dar protagonismo... Chegámos a um ponto onde YouTubers já são considerados estrelas?! Hoje em dia ninguém consegue descolar os olhos dos telemóveis... dos chats, sms, whatsApp, insta, face, etc, etc... Hoje tira-se uma foto dum local não para recordar, mas para poder mostrar ao mundo que lá estivemos, não interessa mais quem nós somos mas sim o que aparentamos ser, na net todos podemos ser super-heróis e sem essa identidade digital... Já não somos nada.

As Leituras do Pedro - Em Watchers regressas à ‘tua’ Lisboa, retratada de forma original, em guerra com as árvores, num misto de retro e de modernidade… Quais as razões para que as histórias que tu contas tenham sempre Lisboa como cenário?
Luís Louro - Para começar, eu sou “alfacinha”, e gosto muito da minha cidade... Tem uma luz única, uma arquitetura incrível, sobretudo os bairros tradicionais são do outro mundo com os seus becos, pracetas, escadinhas, etc... É um excelente ponto de partida, e é sem dúvida um polo de atração para qualquer artista.

As Leituras do Pedro - Em termos de escrita e de desenho como trabalhaste este livro?
Luís Louro - Como te disse tinha já todo o ambiente preparado já há algum tempo, foi uma questão desta feita de encontrar uma história que se enquadrasse no mundo que eu imaginava, e na quantidade de estudos/esboços que já tinha feito. Assim que atingi esse objetivo, comecei a desenhar de imediato.
Normalmente tenho uma sinopse da história, e algumas situações em particular já escritas (por vezes é a partir daí que me surgem as histórias), começo então a escrever... Neste caso surgiu-me tudo de enfiada, mas por norma gosto de escrever um pouco e desenhar de seguida, voltar a escrever e a desenhar mais um pouco.
Para mim o essencial no meu método de trabalho é não ser hermético, não ter a história fechada a novas ideias e desenvolvimentos, pois situações novas estão sempre a surgir, e por vezes podem mudar completamente o rumo da narrativa.

As Leituras do Pedro - Segundo a nota de imprensa da editora, espalhaste pelas pranchas “cerca de 200 referências e easter eggs”. Foi só um divertimento para ti e um desafio à atenção dos leitores ou tinhas mais alguma intenção?
Luís Louro - Desde que me lembro que existem referências nos meus álbuns, é algo que me permite interagir mais ainda com o leitor. Neste caso era o projeto ideal para me divertir um pouco mais e raiar a loucura. (literalmente).
Por exemplo nos comentários existem referências a livros, bandas, filmes, músicas, séries, amigos, etc, nas paredes grafitis por todo o lado, trabalhos esses de artistas da nossa praça, com créditos internacionais, como é o caso do Risko, que amavelmente acedeu a colaborar neste projeto, juntamente com outros amigos. Existem muitos “easter eggs” espalhados, personagens de outras histórias, inclusive em todas as páginas (exceptuando a primeira que não tem pessoas) há sempre alguém com um telemóvel na mão, é só procurarem... (neste caso foi mais uma ideia peregrina a dar-me cabo da cabeça, pois por vezes lá me esquecia e tive de voltar atrás várias vezes para acrescentar o maldito aparelho!!!)
De todos os meus trabalhos até à data este é aquele que devem ler, reler e voltar a ler... Pois vão sempre descobrir coisas novas.

As Leituras do Pedro - Dessas referências, quais as mais significativas para ti?
Luís Louro - Como já referi acima, as colaborações com artistas de outras áreas são de extrema importância, não só por questões estéticas, mas porque promovem uma união entre diferentes artes.
De resto o importante em todas estas referencias, é que me permitem dar a conhecer ao leitor um pouco mais de mim e do meu mundo fora da BD, das séries e filmes que vejo, das bandas que oiço, dos livros que leio, permite-me também brincar e homenagear pessoas que gosto e admiro, algumas que infelizmente nos deixaram recentemente..
É uma característica do meu trabalho, desta feita levada ao extremo!

As Leituras do Pedro - O álbum surge em duas versões, a ‘branca’ e a ‘vermelha’, que se distinguem pelo final diferente. A ideia inicial já era esta ou não foste capaz de optar só por um?
Luís Louro - A ideia original sempre foi esta! Fazer um álbum com dois finais diferentes, foi uma ideia que discuti com um amigo há mais de 20 anos em Angoulême se não me falha a memória... E que sempre ficou a aguardar o projeto ideal.
Creio ser algo inédito, em BD pelo menos... O difícil era convencer a editora a entrar num projeto com estas características, mas tudo acabou por correr bem!

As Leituras do Pedro - Concordas que a ‘versão branca’ segue mais de perto a tua habitual linha de humor e que a ‘versão vermelha’ acentua o tom dramátrico de Watchers e lhe confere um lado trágico a que os teus leitores não estão habituados?
Luís Louro - Bom, aí não posso concordar totalmente... A “versão vermelha” foi a primeira a surgir, e se reparares na maioria dos meus álbuns a solo como Alice, Coração de Papel, e até mesmo no Corvo... existe esse lado trágico. Gosto sempre de “espremer” diferentes camadas, levar o leitor a um lado mais sombrio, escrever argumentos com uma componente mais dramática e intimista, que revelem um pouco mais de mim.
A “versão branca”, não é tão sombria, mas revela a alternativa a uma decisão feita com o coração, ou de cabeça quente... E há sempre uma escolha. Tal como no Matrix podemos optar. Pelo comprimido azul ou pelo comprimido vermelho. ☺

As Leituras do Pedro - Para além da cor diferente do título, haverá mais alguma indicação para o leitor poder optar por um ou outro final?
Luís Louro - O livro é o mesmo, apenas o último capítulo difere... Ambas as versões são autónomas e completas.
A ideia inicial até era de não haver diferenças, o leitor não saber qual o final que lhe iria sair como quando vamos comprar cromos, mas achámos que assim seria uma solução mais interessante, e ficam muito bonitos um ao lado do outro na estante pois as lombadas também diferem... O melhor é mesmo comprarem os dois!!! Ahahahaha.... Estou a falar a sério, comprem os dois!!!

As Leituras do Pedro - Capas diferentes não poderiam tornar mais óbvia a escolha ou a intenção era mesmo que fosse o acaso a decidir que versão cada um lerá?
Luís Louro - Também pensei nisso, mas aí poderia estar a induzir as pessoas em erro e pensarem que seriam dois livros diferentes, e a minha ideia não é enganar ninguém, mas sim confundir... Ehehehe... E a ideia original era mesmo essa, deixar ao acaso. O que em parte irá acontecer de qualquer forma, pois nas lojas muita gente nem irá dar pela pequena diferença, daí ter mantido a mesma capa.

As Leituras do Pedro - Encerrado o capítulo Watchers, que podemos esperar a seguir do autor de banda desenhada Luís Louro?
Luís Louro - Pois… Normalmente quando acabo um livro nem quero ouvir falar dele nos próximos tempos... (em termos de regressar ao tema, claro está), mas neste caso do Watchers, foi uma experiência e um caminho que me deu muito prazer percorrer, e que tal como o “Sentinel” não sei se chegou ao fim…
Tudo vai depender dos meus seguidores e das minhas visualizações, claro está!!!

(imagens disponibilizadas pelo autor; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)

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