Chama-se Miguel Montenegro e como autor
de BD começou por dar nas vistas quando trabalhou para a Marvel. O
percurso desde então até ao recente Futuroscópio, passando pelos
Psicopatos, foi abordado na entrevista que se segue.
As Leituras do Pedro - Foste o
“primeiro português a desenhar para a Marvel”. Como e quando é
que isso aconteceu? O que fizeste?
Miguel Montenegro - Há dois
momentos a serem considerados quanto à minha colaboração com a
Marvel: o primeiro foi a realização de uma ilustração para a capa
da edição portuguesa dos X-Men, nº 51, em 2004; o segundo
foi a colaboração na maxi-série Red Prophet, uma adaptação
da obra homónima de Orson Scott Card, publicada pelo Marvel
norte-americana, onde fiz os desenhos, a arte-final e as cores, em
2006.
As Leituras do Pedro - Esse ‘rótulo’
ainda te persegue?
Miguel Montenegro - É um epíteto
do qual me orgulho, sobretudo se considerarmos que trabalhar para a
Marvel foi o objectivo que estabelecera para mim no início da minha
adolescência. Ter sido o primeiro português a consegui-lo é
acidental. Outro ilustrador poderia tê-lo feito, mas reconheço que,
na altura, entre os nossos colegas, eu era o que mais me esforçava e
sacrificava para o conseguir.
As Leituras do Pedro - Às vezes
sentes saudades desse tempo ou de voltar a desenhar super-heróis?
Miguel Montenegro - Não tenho
saudades desse tempo nem de voltar a desenhar super-heróis. Sou mais
feliz a escrever e a desenhar as minhas próprias histórias, ao meu
ritmo, sem pressões editoriais ou preocupações em acompanhar a
moda. No entanto, isso não significa que não volte a trabalhar para
a Marvel ou a DC, de forma pontual, caso uma oportunidade
interessante se apresente, mas, de um modo geral, prefiro dirigir o
meu trabalho ao público em geral, como acontece com os Psicopatos
e o Futuroscópio, e não apenas a um nicho cada vez mais
restrito e peculiar de pessoas que lê apenas banda desenhada de
super-heróis.
As Leituras do Pedro - Mais
recentemente, surgiram os Psicopatos,
que nasceram online e tiveram edição em álbum… Que é feito
deles?
Miguel Montenegro - Os Psicopatos
surgiram em 2013 enquanto estudava Psicologia Clínica. Neste
momento, há três álbuns publicados: o volume zero, que é uma
edição comemorativa do cinquentenário do ISPA, a minha alma
mater; e os volumes um e dois, que são edições generalistas,
estando o primeiro volume esgotado e o segundo a caminho de esgotar.
Espero que, em 2019, se consigam reeditar os dois primeiros números
e lançar o terceiro, do qual metade está feita.
As Leituras do Pedro - Como funcionou
a edição francesa?
Miguel Montenegro - A edição
francesa dos Psicopatos reúne boa parte dos dois primeiros volumes
portugueses. Tem um formato diferente, mais próximo de um álbum
tradicional franco-belga, de modo a adequar-se à colecção em que
foi integrada. Assim que tiver finalizado o terceiro volume
português, conto que seja publicado como o segundo volume
franco-belga, reunindo ainda as tiras que não foram publicadas no
primeiro.
As Leituras do Pedro - Agora, estás
de volta com Futuroscópio. Como nasceu este álbum?
Miguel Montenegro - O Futuroscópio
é uma antologia da totalidade de histórias curtas de ficção
científica em banda desenhada que escrevi – e que, salvo em dois
casos, também desenhei –, entre 2016 e 2018. Algumas foram
previamente publicadas na revista BANG! (Saída de Emergência) ou no
anuário Apocryphus (Mighell). A excepção está nas duas últimas,
de uma prancha cada, publicadas em 2013 no fanzine unitário Double
Helix, editado por mim, e que são aqui incluídas por se
enquadrarem na temática do livro. Todas elas foram revistas e
actualizadas em função do meu gosto actual.
Estas histórias foram escritas em
períodos diferentes e de modo a que cada uma fosse auto-contida, sem
que houvesse um fio condutor interno entre elas. O recurso às mesmas
personagens e instituições, como os juízes-médicos, os
enfermeiros e A Cura, dão conta de um universo de elementos
partilhados, mas sem encadeamento temporal ou espacial necessário.
Esses elementos são usados para explorar dimensões diferentes, de
acordo com a sua utilidade, pelo que têm identidade fluida entre
narrativas.
Com cerca de 100 páginas de banda
desenhada dispersas por várias publicações, fez-me sentido
reuni-las num só volume, pelo menos as que se enquadram sob a mesma
temática.
As Leituras do Pedro - Para além do
autor, há alguma coisa em comum entre Futuroscópio e os
Psicopatos?
Miguel Montenegro - Tal como nos
Psicopatos, as histórias no Futuroscópio expressam
reflexões críticas decorrentes da minha formação académica,
entrecruzando temáticas de psicologia e psiquiatria com direito de
cidadania e intervencionismo estatal, bem como filosofia e ciência.
As diferenças são sobretudo estéticas, dado que os Psicopatos
são uma tira humorística, desenhada num estilo mais cartoon,
e o Futuroscópio é uma banda desenhada no sentido mais
convencional do termo, desenhada num estilo mais “marvelesco”, e
realizado numa fase onde eu já reunia formação adicional graças
aos meus estudos doutorais em filosofia, estando a dimensão política
muito mais presente.
As Leituras do Pedro - (Ignora se
estiver enganado mas) Tal como em Psicopatos, a psicologia
volta a ter um papel determinante no novo álbum. Porquê?
Miguel Montenegro - Porque a minha
formação académica de base é a psicologia. A partir dela, estendi
as minhas investigações à sociologia e à política, passando
necessariamente pela filosofia e pela ciência em geral e, em menor
grau, pela antropologia. É neste campo das Humanidades que encontro
muitas contradições cujos optimismos positivistas me interessam
explorar. Tudo está sempre em aberto e é a consciência dessa
abertura que procuro promover. No fundo, o meu trabalho é uma
militância em prol da promoção da liberdade, da verdade e da
fluidez.
As Leituras do Pedro - O que devemos
esperar desta colectânea de histórias curtas?
Miguel Montenegro - Futuroscópio
apresenta vários mundos possíveis dentro de um mesmo universo
distópico, marcado pelo intervencionismo estatal e pelo furor
terapêutico da medicina, onde o individualismo é uma ilusão e a
liberdade um conceito arcaico, num futuro onde a pessoa dá lugar ao
simulacro e a angústia à promessa de felicidade. O poder político
e a autoridade médica aliam-se para determinar o destino da
Humanidade, e não se admitem excepções. Vigiar e punir,
estigmatizar e manipular: a diferença é uma doença que pode ser
curada; a revolução uma epidemia a ser tratada.
Uma professora universitária mencionou
tratar-se de ensaios filosóficos ficcionados em banda desenhada,
dado que são abordados temas importantes dos debates ideológicos e
morais do início do século XXI. É uma interpretação simpática.
Espero, acima de tudo, que estas histórias divirtam o leitor
estimulado a pensar nelas e por elas.
As Leituras do Pedro - A visão que
ofereces do futuro é muito pessimista e totalitária. É apenas uma
opção narrativa ou é assim que o vês?
Miguel Montenegro - Não acho que
a minha visão do futuro seja necessariamente pessimista. Pelo
contrário, nas minhas histórias, as populações tendem a ser mais
felizes e as instituições mais consensuais. O mundo é “melhor”.
Os dilemas surgem apenas em indivíduos isolados e anormais, os quais
têm de escolher entre valores e desejos conflituantes: liberdade ou
segurança, autenticidade ou felicidade, individualismo ou
totalitarismo, realização pessoal ou impessoalidade. Eu tendo a
optar pelas primeiras opções, pelo que estes mundos
apresentam-se-me como problemáticos. No entanto, a maioria elege as
segundas, preferindo uma escravatura feliz a uma liberdade
angustiante.
As Leituras do Pedro - Qual o projecto
que se segue?
Miguel Montenegro - Para já,
ainda estou em fase de enamoramento pelo Futuroscópio. Quero
aproveitar ao máximo esta relação. Depois, logo se vê.
(clicar nas imagens para as aproveitar em
toda a sua extensão)
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