23/10/2018

Miguel Montenegro: "Não tenho saudades de desenhar super-heróis"






Chama-se Miguel Montenegro e como autor de BD começou por dar nas vistas quando trabalhou para a Marvel. O percurso desde então até ao recente Futuroscópio, passando pelos Psicopatos, foi abordado na entrevista que se segue.

As Leituras do Pedro - Foste o “primeiro português a desenhar para a Marvel”. Como e quando é que isso aconteceu? O que fizeste?
Miguel Montenegro - Há dois momentos a serem considerados quanto à minha colaboração com a Marvel: o primeiro foi a realização de uma ilustração para a capa da edição portuguesa dos X-Men, nº 51, em 2004; o segundo foi a colaboração na maxi-série Red Prophet, uma adaptação da obra homónima de Orson Scott Card, publicada pelo Marvel norte-americana, onde fiz os desenhos, a arte-final e as cores, em 2006.

As Leituras do Pedro - Esse ‘rótulo’ ainda te persegue?
Miguel Montenegro - É um epíteto do qual me orgulho, sobretudo se considerarmos que trabalhar para a Marvel foi o objectivo que estabelecera para mim no início da minha adolescência. Ter sido o primeiro português a consegui-lo é acidental. Outro ilustrador poderia tê-lo feito, mas reconheço que, na altura, entre os nossos colegas, eu era o que mais me esforçava e sacrificava para o conseguir.

As Leituras do Pedro - Às vezes sentes saudades desse tempo ou de voltar a desenhar super-heróis?
Miguel Montenegro - Não tenho saudades desse tempo nem de voltar a desenhar super-heróis. Sou mais feliz a escrever e a desenhar as minhas próprias histórias, ao meu ritmo, sem pressões editoriais ou preocupações em acompanhar a moda. No entanto, isso não significa que não volte a trabalhar para a Marvel ou a DC, de forma pontual, caso uma oportunidade interessante se apresente, mas, de um modo geral, prefiro dirigir o meu trabalho ao público em geral, como acontece com os Psicopatos e o Futuroscópio, e não apenas a um nicho cada vez mais restrito e peculiar de pessoas que lê apenas banda desenhada de super-heróis.

As Leituras do Pedro - Mais recentemente, surgiram os Psicopatos, que nasceram online e tiveram edição em álbum… Que é feito deles?
Miguel Montenegro - Os Psicopatos surgiram em 2013 enquanto estudava Psicologia Clínica. Neste momento, há três álbuns publicados: o volume zero, que é uma edição comemorativa do cinquentenário do ISPA, a minha alma mater; e os volumes um e dois, que são edições generalistas, estando o primeiro volume esgotado e o segundo a caminho de esgotar. Espero que, em 2019, se consigam reeditar os dois primeiros números e lançar o terceiro, do qual metade está feita.

As Leituras do Pedro - Como funcionou a edição francesa?
Miguel Montenegro - A edição francesa dos Psicopatos reúne boa parte dos dois primeiros volumes portugueses. Tem um formato diferente, mais próximo de um álbum tradicional franco-belga, de modo a adequar-se à colecção em que foi integrada. Assim que tiver finalizado o terceiro volume português, conto que seja publicado como o segundo volume franco-belga, reunindo ainda as tiras que não foram publicadas no primeiro.

As Leituras do Pedro - Agora, estás de volta com Futuroscópio. Como nasceu este álbum?
Miguel Montenegro - O Futuroscópio é uma antologia da totalidade de histórias curtas de ficção científica em banda desenhada que escrevi – e que, salvo em dois casos, também desenhei –, entre 2016 e 2018. Algumas foram previamente publicadas na revista BANG! (Saída de Emergência) ou no anuário Apocryphus (Mighell). A excepção está nas duas últimas, de uma prancha cada, publicadas em 2013 no fanzine unitário Double Helix, editado por mim, e que são aqui incluídas por se enquadrarem na temática do livro. Todas elas foram revistas e actualizadas em função do meu gosto actual.
Estas histórias foram escritas em períodos diferentes e de modo a que cada uma fosse auto-contida, sem que houvesse um fio condutor interno entre elas. O recurso às mesmas personagens e instituições, como os juízes-médicos, os enfermeiros e A Cura, dão conta de um universo de elementos partilhados, mas sem encadeamento temporal ou espacial necessário. Esses elementos são usados para explorar dimensões diferentes, de acordo com a sua utilidade, pelo que têm identidade fluida entre narrativas.
Com cerca de 100 páginas de banda desenhada dispersas por várias publicações, fez-me sentido reuni-las num só volume, pelo menos as que se enquadram sob a mesma temática.

As Leituras do Pedro - Para além do autor, há alguma coisa em comum entre Futuroscópio e os Psicopatos?
Miguel Montenegro - Tal como nos Psicopatos, as histórias no Futuroscópio expressam reflexões críticas decorrentes da minha formação académica, entrecruzando temáticas de psicologia e psiquiatria com direito de cidadania e intervencionismo estatal, bem como filosofia e ciência. As diferenças são sobretudo estéticas, dado que os Psicopatos são uma tira humorística, desenhada num estilo mais cartoon, e o Futuroscópio é uma banda desenhada no sentido mais convencional do termo, desenhada num estilo mais “marvelesco”, e realizado numa fase onde eu já reunia formação adicional graças aos meus estudos doutorais em filosofia, estando a dimensão política muito mais presente.

As Leituras do Pedro - (Ignora se estiver enganado mas) Tal como em Psicopatos, a psicologia volta a ter um papel determinante no novo álbum. Porquê?
Miguel Montenegro - Porque a minha formação académica de base é a psicologia. A partir dela, estendi as minhas investigações à sociologia e à política, passando necessariamente pela filosofia e pela ciência em geral e, em menor grau, pela antropologia. É neste campo das Humanidades que encontro muitas contradições cujos optimismos positivistas me interessam explorar. Tudo está sempre em aberto e é a consciência dessa abertura que procuro promover. No fundo, o meu trabalho é uma militância em prol da promoção da liberdade, da verdade e da fluidez.

As Leituras do Pedro - O que devemos esperar desta colectânea de histórias curtas?
Miguel Montenegro - Futuroscópio apresenta vários mundos possíveis dentro de um mesmo universo distópico, marcado pelo intervencionismo estatal e pelo furor terapêutico da medicina, onde o individualismo é uma ilusão e a liberdade um conceito arcaico, num futuro onde a pessoa dá lugar ao simulacro e a angústia à promessa de felicidade. O poder político e a autoridade médica aliam-se para determinar o destino da Humanidade, e não se admitem excepções. Vigiar e punir, estigmatizar e manipular: a diferença é uma doença que pode ser curada; a revolução uma epidemia a ser tratada.
Uma professora universitária mencionou tratar-se de ensaios filosóficos ficcionados em banda desenhada, dado que são abordados temas importantes dos debates ideológicos e morais do início do século XXI. É uma interpretação simpática. Espero, acima de tudo, que estas histórias divirtam o leitor estimulado a pensar nelas e por elas.

As Leituras do Pedro - A visão que ofereces do futuro é muito pessimista e totalitária. É apenas uma opção narrativa ou é assim que o vês?
Miguel Montenegro - Não acho que a minha visão do futuro seja necessariamente pessimista. Pelo contrário, nas minhas histórias, as populações tendem a ser mais felizes e as instituições mais consensuais. O mundo é “melhor”. Os dilemas surgem apenas em indivíduos isolados e anormais, os quais têm de escolher entre valores e desejos conflituantes: liberdade ou segurança, autenticidade ou felicidade, individualismo ou totalitarismo, realização pessoal ou impessoalidade. Eu tendo a optar pelas primeiras opções, pelo que estes mundos apresentam-se-me como problemáticos. No entanto, a maioria elege as segundas, preferindo uma escravatura feliz a uma liberdade angustiante.

As Leituras do Pedro - Qual o projecto que se segue?
Miguel Montenegro - Para já, ainda estou em fase de enamoramento pelo Futuroscópio. Quero aproveitar ao máximo esta relação. Depois, logo se vê.

(clicar nas imagens para as aproveitar em toda a sua extensão)

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