27/10/2020

Armazém Central: Confissões - Montreal

Na minha aldeia...








No regresso às livrarias nacionais de uma das mais sublimes séries que a banda desenhada - tout court - já nos ofereceu, começo este texto como raramente o faço: não percam a oportunidade de ler esta obra.



Pré-Resumo

Notre-Dame-Des-Lacs é uma pequena aldeia do Quebeque, algures nos anos 1920.

Fechada sobre si próprio, auto-sustentável quanto aos bens essenciais, para o restante - algum vestuário, açúcar, sal, café, materiais de carpintaria... - depende do armazém de Félix. Que, aliás, é o único local de comércio de toda a localidade.

Com a morte daquele, a viúva, Marie, bastante mais nova, assume o negócio - algo surpreendente naqueles tempos! - e a vida continua... até à chegada acidental de Serge.

Homem maduro, vivido, experiente, que conhece meio-mundo (de então), de Montreal a Paris, a sua chegada vem desestabilizar o quotidiano da aldeia. Olhado primeiro de soslaio e com desconfiança, aos poucos vai caindo no gosto dos habitantes, primeiro pela sua solicitude, depois pelos seus conhecimentos postos ao serviço da comunidade, finalmente pela inovação de instalar (no armazém) um restaurante gourmet gratuito.

Inevitavelmente, Marie e Serge aproximam-se.


Resumo

Marie e Serge vivem debaixo do mesmo tecto. A( má-língua da)s beatas locais, três cunhadas há muito viúvas, faz o seu trabalho e a aldeia - com o padre Réjean - à cabeça, sente-se na obrigação, de forma mais ou menos insinuada, de apontar o caminho do matrimónio aos dois 'pecadores'.

Mas - nós já sabemos uma parte, adivinhámos outra - nem tudo em Notre-Dame-des-Lacs é o que parece (aos habitantes locais, Marie incluída) o que vai provocar o segundo grande abalo no equilíbrio local.


Desenvolvimento

Projecto elaborado a quatro mãos - e que mãos! - por Régis Loisel e Jean-Louis Tripp, Armazém Central é bem mais do que uma crónica rural.

É um drama sobre avanços (?) civilizacionais, sobre mudança, sobre progresso (?), sobre emancipação, sobre assumir papéis em oposição a ser o que os outros desejam.


É uma história de descoberta, de afirmação própria, de recusa da pressão social em prol da realização pessoal.

É por isso que Marie se arrisca com Serge, é por isso que - de alguma forma conscientemente - se arrisca com Marceau, é por isso que força, que procura ser feliz, primeiro com aqueles de quem gosta, depois, uma vez desprezada, por sua conta e (algum) risco.

Mas se Marie é a verdadeira protagonista desta obra, enquanto elemento de insatisfação e desejo de alcançar mais, enquanto alguém com capacidade para concretizar os sonhos, mesmo os mais recalcados, o tranquilo Serge tem igualmente nela um papel preponderante, pela sua ponderação, pela sua calma, também pela sua alegria de viver.

A par deles, Loisel e Tripp, proporcionam-nos uma imensa galeria de personagens marcantes: o doce Gaëtan, o perdido padre Réjean, o ateu Noël, as velhas beatas, o poeta Alcide, o visionário Isaac cego por estilhaços de obus na I Guerra Mundial... E, ainda, como mais um pormenor: os comentários, em off, pontuais e cirúrgicos, do falecido Félix, qual consciência incrédula de um passado que já não existe e nunca mais voltará.

Com eles, constroem uma história profundamente humana, sem bons nem maus, sem elogiar nem criticar, apresentando apenas, de uma forma tão normal e credível, o dia-a-dia como os momentos especiais (baptizado, funeral...) de uma pequena comunidade, tão capaz de ser solidária e pronta a ajudar, quanto de revelar o pior de cada um e de todos em conjunto.

Esta bela representação, decorre perante os nossos olhos com um traço semi-caricatural delicioso, dinâmico e hiper-expressivo, umas vezes suportado por curtos textos, outras por saborosos diálogos, outras ainda de forma muda, dando maior destaque às tarefas do dia-a-dia, ao desfrutar da natureza ou às mais ricas e sinceras emoções. E tudo num registo sereno, condimentado de forma delicada com humor e grande ternura, como raras vezes encontrei em banda desenhada.


A edição

Já vai sendo hábito, mas não se deve vulgarizar nem dar por adquirido. Esta é mais uma bela edição da Arte de Autor. Capa macia ao tacto, edição sólida, boa gramagem de papel, boa impressão, (em mais) um livro com quase centena e meia de páginas que proporciona uma leitura demorada e suculenta.

Numa série 'apanhada' já em curso - mas há a promessa da Arte de Autor da edição dos 3 volumes iniciais (lançados há mais de uma década pela ASA) se as vendas deste volume e do próximo o proporcionarem - é positiva a inclusão de um resumo do que aconteceu até agora.

Já menos conseguida é a inserção da tradução de cartazes em rodapé de página, algo não muito habitual nos tempos que correm, embora possa haver questões técnicas (que desconheço) que a isso obriguem.


Encerro este texto, de forma similar à sua abertura, fazendo algo que também é raro: aconselhando a leitura do texto que o Hugo Pinto escreveu no Vinhetas 2020 sobre este mesmo livro, que de alguma forma complementa de forma mais concreta o que aqui ficou escrito de modo mais emocional.


Armazém Central: Confissões - Montreal
Este álbum duplo inclui os volumes 4 e 5 da edição original
Régis Loisel e Jean-Louis Tripp
Arte de Autor
Portugal, 27 de Outubro de 2020
227 x 302 mm, 144 p., cor, capa dura
26,00 €

(imagens disponibilizadas pela Arte de Autor; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)

3 comentários:

  1. Esta "ameaça" de só lançarem os primeiros volumes se correr bem a venda deste e de um proximo....

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    Respostas
    1. Li e reli o que escrevi acima e é da minha responsabilidade e não consigo ver nenhuma ameaça. Apenas a constatação de uma realidade incontornável, seja para reeditar volumes antigos, seja para editar os novos: se a série não vender, será cancelada. É assim que funciona na BD - em Portugal ou em qualquer parte do mundo - como na TV ou no cinema. Quando não há (tele-)espectadores suficientes, os contratos para séries ou filmes não são renovados.
      Boas leituras!

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    2. Percebo o que o Pedro refere, mas (muito provavelmente!) vai fazer efeito de "pescadinha-de-rabo-na-boca"): ao não garantirem a reedição, desmotiva a confiança da compra das actuais edições.
      Leitor de BD (muito!) escaldado, de edições interrompidas tem medo!

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