26/08/2021

José de Freitas: “Acho que Eça de Queirós não aprovaria a ideia de converter grandes romances em banda desenhada”





Chegou dia 24 às bancas e quiosques nacionais Os Maias em banda desenhada, décimo volume da colecção Clássicos da Literatura em BD.
Foi o pretexto para uma conversa com José de Freitas, para conhecer o seu envolvimento na concepção desta obra.


As Leituras do Pedro - Qual foi a tua contribuição para esta adaptação?

José de Freitas - No geral, trabalhei em duas fases, uma primeira em que segui o trabalho do Canizales, e uma segunda de redacção dos textos finais.

O Canizales foi-me mandando as planificações das páginas, e a sua divisão de “cenas” do livro pelas páginas do álbum de BD. O processo de trabalho implicava uma apreciação minha, para que a Levoir desse o OK para o desenho final.

A minha intervenção nesta fase não foi muito extensa, apenas rever aqui e ali alguns elementos do livro que me pareciam desnecessários, como leitor português, porque às vezes o Canizales quis inserir alguns acontecimentos e referências em páginas já com muita informação, e eu ajudei a seleccionar algumas que foram retiradas; ajudei com algum iconografia que ele precisou de usar da Lisboa do Eça, quando ele não a encontrou na net; e dei algumas opiniões mais pessoais aqui e ali sobre a composição, etc... que gosto de imaginar que pontualmente melhoraram algumas páginas. Mas a parte visual e gráfica do livro é essencialmente toda dele.

A segunda fase foi mais directamente minha: peguei nos textos que o Canizales tinha seleccionado para as páginas, e sempre com o romance original ao lado, adaptei o texto. Como podem imaginar, não é fácil encaixar 400 e tal páginas em 45 pranchas de BD, e nalguns pontos não foi um processo fácil. Nalguns casos, simplesmente escrevi pelas minhas próprias palavras. Mas há muitas cenas icónicas em que é bom ouvir o “som” da escrita do Eça, e sempre que possível, nesses momentos importantes do livro, tentei manter frases próximas do original, mesmo que encurtadas, etc... Podem comparar as falas finais do romance com as últimas vinhetas da BD para ter uma ideia, aquele resumo que o Ega faz deles como pessoas, e a cena a correrem atrás do eléctrico.


As Leituras do Pedro - Como se desenvolveu a tua colaboração com o Canizales? Que método de trabalho utilizaram?

José de Freitas - Como disse acima, fui recebendo as planificações esboçadas por ele, em “pacotes” de páginas, e dei a minha apreciação, antes de tudo, relativamente à sua importância para a história, e sobre as cenas mais ou menos importantes. Devo dizer que, de modo geral, o Canizales captou perfeitamente a linha narrativa principal de Os Maias, e que não foi preciso fazer grandes mudanças. Eu enviava um email, e ele respondia, por vezes já com um esboço novo, e a coisa andou muito bem.

Para perceberem melhor, posso dar exemplos de uma ou outra alteração: por exemplo, a dada página, via-se o Afonso a regressar a Santa Olávia, e sugeri que isso fosse apenas mencionado no texto para libertar mais espaço para as outras ilustrações e não sobrecarregar a página; noutro caso sugeri reorganizar as vinhetas em 4 faixas horizontais (em vez de 4 e meia) para tornar a página mais legível; coisas assim, de modo geral não interferi quase nada com a composição. Houve também algumas sugestões para algumas alterações a certas cores aqui e ali.


As Leituras do Pedro - Quais as maiores dificuldades que surgiram na adaptação?

José de Freitas - Encaixar 400 páginas de um dos maiores romances da literatura portuguesa - em importância e tamanho - em apenas 45 pranchas foi o maior desafio! Mas esse trabalho foi essencialmente feito pelo Canizales, que fez a découpage original do romance em páginas de BD. A organização geral foi dele, e como disse acima, ele captou bem a essência do romance, e nem acho que se possa dizer que é “uns Maias vistos por um leitor estrangeiro”, porque o que é importante, está tudo lá: aquela divisão forte entre gerações, a inicial, do Afonso da Maia, e as gerações posteriores, mais questionáveis, mais “débeis”, a hipocrisia da sociedade lisboeta da altura, uma certa falha moral do Carlos, e as suas mudanças de opinião por vezes imprevisíveis, etc... Ou se calhar essas são as minhas opiniões sobre o romance!


As Leituras do Pedro - Achas que o Eça de Queiroz ficaria satisfeito com o resultado final?

José de Freitas - Não faço a mínima ideia! Uma parte de mim, mais realista, acha que ele não aprovaria muito a ideia de converter grandes romances em banda desenhada, e que talvez não apreciasse muitas das soluções visuais do livro. Mas quem sabe? Ele foi amigo de Rafael Bordalo Pinheiro, um dos precursores da banda desenhada no nosso país, e talvez se deixasse influenciar por ele e aceitasse esta adaptação.


(versão integral da entrevista feita por mail que esteve na base do texto publicado no Jornal de Notícias de 22 de Agosto; esboço @canizales_books disponibilizados por Canizales; capa e prancha disponibilizadas pela editora; clicar nas imagens para as apreciar em toda a sua extensão)

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