Ideologia
“Mais do que nunca, uma nação comandada por bandidos e mafiosos.”
In O Doutrinador
Utilizar
personagens ficcionais para transmitir ideologias é algo vulgar e
comum e a banda desenhada - como qualquer outra forma de comunicação
- não está isenta de o fazer.
Pessoalmente,
acredito que quanto mais realista for o relato, mais perigoso se
torna quando
estamos perante extremismos, como
é
o caso de O
Doutrinador.
É evidente que o ‘perigoso’ atrás referido é subjectivo e quando pensamos no público-alvo de uma BD, quando comparado com o de um filme ou uma série de TV, por exemplo, compreendemos que uma obra aos quadradinhos chegará sempre a uma franja de público muito restrita.
O Doutrinador - que até já deu origem a um filme live-action - é uma personagem criada por Luciano Cunha em 2008 e este volume compila em duas centenas de páginas as três edições lançadas entre 2013 e 2018, bem como algumas ilustrações e histórias curtas - uma das quais, curiosamente, passada em… Portugal!
Para quem lê habitualmente banda desenhada de super-heróis - e não interpretem estas palavras como qualquer acusação de plágio - identifica-lo-à facilmente com o Justiceiro ou o Batman (na sua versão mais dura e negra), no sentido que se julga acima da lei e actua como juiz e carrasco, como senhor único de um sistema judicial próprio que não admite sequer defesa aos acusados - leia-se antes condenados.
Nada de muito novo, pensarão alguns, a não ser o facto de estas histórias não decorrerem num qualquer universo ficcional da Marvel ou da DC, onde nada é definitivo e tudo tem sempre solução, mas sim em pleno Brasil contemporâneo.
Um Brasil que, na óptica do protagonista é um paraíso de corrupção e abusos de todo o género, onde os políticos - a todos os níveis, dos simples vereadores ao próprio presidente - se aproveitam dos seus cargos para porem e disporem dos outros e enriquecerem ilicitamente. Eles e aqueles que orbitam na sua esfera de acção. E, como tal, estão sujeitos a serem sumariamente julgados ou, na maior parte das vezes, pura e simplesmente executados.
O Doutrinador surge, assim, como super-herói de extrema-direita, inimigo jurado de outras ideologias, actuando quase sempre a solo ou apoiado num círculo muito restrito (especialmente no segundo dos três relatos) para impor a sua vontade de limpar um Brasil que considera decadente e podre, sem admitir que até pode estar errado...
Nada de novo, uma vez mais, a não ser… as histórias decorrerem no tal Brasil actual e facilmente identificável - como identificáveis são os políticos que o protagonista abate - mesmo que no livro ostentem nomes diferentes dos seres reais que existem na (nossa) realidade.
Realidade que se torna mais palpável e próxima perante o retrato que é traçado dos meios de comunicação social - lá como cá - mais interessados na informação espectáculo, na vida dos (ditos) famosos ou nos grandes escândalos, do que em assumirem uma atitude isenta e realmente de serviço público.
Dirão alguns que é aquela proximidade do real, esta identificação com aspectos que também sentimos, que está o ponto mais forte e interessante de O Doutrinador, mas é também essa mesma proximidade e o risco de confundir esta ficção com a realidade, que torna perigosa a sua mensagem, podendo levar alguns a levar a sério o que não passa de uma ficção… Ou a considerarem o protagonista um herói e não alguém desiquilibrado...
Apesar de uma ou outra limitação gráfica, que Luciano Cunha ultrapassa com o recurso a uma planificação variada, à pouca pormenorização de rostos e fundos e ao privilegiar a narrativa em detrimento do aspecto artístico, o conjunto lê-se em bom ritmo, o que contribui para não deixar muito espaço à reflexão e a realçar a mensagem dura e extremista que pretende(?) passar.
E que - neste caso como em muitos outros, seja qual for a ideologia envolvida - é necessário ler com o devido distanciamento e o necessário crivo.
O
Doutrinador 2013-2018
Definitivo
- Três edições compiladas
Luciano
Cunha
Super
Prumo
Brasil,
2021
175
x 265
mm, 200
p., cor,
capa cartão
com badanas
R$
99,90
(clicar nas imagens para as apreciar em toda a sua extensão)
Parabéns pela sua revisão deste "pasquim". Coloca os pontos nos "is" com todo o cavalheirismo e subtileza. Bravo. Indo buscar o título da obra de Giardino "No Pasaran".
ResponderEliminarObrigado Diogo.
EliminarBoas leituras!