Papá em África é
uma crítica à dominação racial e colonial que atravessa, ainda hoje, em pleno
pós-apartheid, a sociedade sul-africana, mostrando como certas estruturas
sobrevivem à destruição dos quadros legais que lhes deram origem.
Nota de imprensa e imagens já a seguir.
Antes de mais Anton usa muitas vezes o pseudónimo de Joe
Dog, criado em 1992, para assinar BDs, porque ouvia música punk e
entrou naquele esquema do pseudónimo podre, como é hábito dessa subcultura.
Além do mais, nesse mesmo ano juntamente com Conrad Botes (que nos
visitou recentemente numa exposição na Fundação Gulbenkian) tinham criado
revistas de BD bastante polémicas na África do Sul. A dois anos antes do fim
oficial do Apartheid, um pseudónimo sempre ajudava a ter menos problemas com a
sociedade africânder. O título mais famoso foi o Bitterkomix, onde
Joe Dog e Botes faziam BDs que chocavam os africânderes e os supostos
liberais ingleses, denunciando a loucura ideológica e religiosa do Partido
Nacional, perito em segregação racial e deseducação sexual e colocavam em
questão a identidade do sul-africano, especialmente a do homem branco. Não
será à toa que o artista Joe Dog tenha colaborado com os Die Antwoord,
também eles iconoclastas com os códigos de identidade naquele país.
Papá em África é uma crítica à dominação racial e
colonial que atravessa, ainda hoje, em pleno pós-apartheid, a sociedade
sul-africana, mostrando como certas estruturas sobrevivem à destruição dos
quadros legais que lhes deram origem. Mas não se enganem, não vão encontrar na
obra de Anton, caminhos ou sonhos para uma “nação arco-íris”; nem é oferecida
nenhuma reinvenção do lugar do negro na BD ou alguma espécie de “herói” negro
da resistência que pudesse ser “voz” da população negra sul-africana, de que
Anton, aliás, na realidade não faz parte nem tem a pretensão de ser.
O objectivo central de Papá em África é pontapear
com escárnio e pontaria certeira a hipocrisia e a (má) consciência da África do
Sul branca, num pós-apartheid lobotomizado. Anton sampla e
crítica corrosivamente o imaginário colonialista e racista, como aquele
oferecido por Hergé em Tintin no Congo (1931), álbum que Anton
admite ser a sua Bíblia visual, onde volta sempre para sacar mais uma imagem ou
uma sequência narrativa.
Numa entrevista o autor adverte sobre esse livro de Hergé:(…)
eu penso que não é um bom álbum, é mais direccionado para um público infantil.
E é aí que o problema reside para mim. Porque se fosse dirigido para um público
adulto, ele funcionaria melhor. Mas porque é para crianças, elas vêem os
estereótipos e (…) pensam que esses estereótipos são reais (…). Eu lia o álbum
com a minha filha, quando ela era muito jovem, talvez com dois anos, e a certa
altura, ela perguntava-me: “o que este macaco está aqui a fazer?” e eu
dizia-lhe: “Isso não é um macaco. É uma pessoa negra.” E ficava completamente
confusa, não conseguia perceber: “estes são os macacos!”
Após processos judiciais, nos últimos anos e em alguns
países (como no Reino Unido), o acesso à obra Tintin no Congo tem
sido restringido à população adulta ou explicitamente sinalizado. Na sua terra
natal, na Bélgica, Tintin no Congo, apesar da acção judicial instaurada pelo
congolês Bienvenue Mbutu Mondondo, em 2007, continua a circular sem
problemas. Recordamos que Mondondo queria que a edição deste álbum de BD
tivesse uma introdução a explicar que se trata de uma obra feita sobre a
perspectiva colonialista da época, para que os estereótipos racistas que o
álbum vincula pudessem ser entendidos à luz dos nossos dias. Tal não foi
permitido e os fãs aplaudiram cegamente o veredicto sem se olharem ao espelho.
Em Portugal, o primeiro país a traduzir a obra de Hergé,
pelas mãos do padre e sociólogo Abel Varzim e por Adolfo Simões
Müller, director do jornal infantil O Papagaio, Tintin no Congo foi
rebaptizado em 1939 precisamente para essa publicação como Tim-Tim em
Angola (seja como for para muitos ainda hoje, África é apenas um país
enorme). Aqui, a obra não é alvo de qualquer controvérsia e ainda hoje
conseguimos encontrá-la sem dificuldade ou especiais advertências nas secções
infantis/ juvenis das livrarias. Na edição de 1996, da Verbo, no seu interior
continua lá a degradante expressão “Siô”...
Chegamos ao fio condutor que liga o trabalho de Anton a
Portugal, em que só a MMMNNNRRRG é que poderia editar um álbum destes
- perdoem-nos a falta de modéstia. Esta selecção da obra de Anton, quer
como autor de BD quer como pintor deveria reavivar todos os “traumas” que o
branco, seja ele sul-africano, europeu ou português, tem em relação ao negro,
fazendo repensar como a relação com esse outro é constitutiva da própria
concepção de si mesmo e de como esses espinhos históricos que são a
escravatura, a colonização e a segregação racial estão cravados no convívio e
interacção social, nas relações político-económicas entre “norte e sul” e no
próprio capitalismo. A crítica à sociedade sul-africana do pós-apartheid cabe
que nem uma luva a países ex-colonialistas como o nosso.Poder-se-á estender a
crítica de Anton em Preto e Die Taal à questão da lusofonia
e da língua portuguesa? Vejam-se palavras como “catinga”, “escarumba”, “mulato”
ou expressões como “trabalhar como um preto”, “e eu sou preto, não?” Poderemos
nós encontrar em fenómenos como o do pseudo-Arrastão na praia de Carcavelos,
criticamente esmiuçado no documentário de Diana Andringa gratuitamente
disponibilizado na Internet, como sinais parecidos àquela distorção da
realidade fabricada pelo misto de sentimento culpa e preconceito da população
branca sul-africana que os faz temer e esperar uma “revolta” bárbara dos
negros?
Será que África do Sul desmemoriada do pós-apartheid,
criticada por Anton, tem alguma semelhança com o Portugal “pós-colonial” que
teima em vangloriar-se dos “Descobrimentos” (veja-se o novo museu inaugurado no
Porto, World of Discoveries, mas também os manuais escolares de história)
e de uma colonização “branda” (o dito luso-tropicalismo), sem assumir a sua
quota-parte na chaga global que é a exploração e subjugação dos países
africanos e dos afro-descendentes onde quer que estes nasçam? É que não
sejamos ingénuos ou hipócritas, Portugal foi o primeiro e maior traficante de
escravos africanos no Atlântico, portanto, um dos maiores responsáveis do
chamado “holocausto africano”; foi dos últimos países europeus a reconhecer a
independência das suas colónias em África - quem ainda duvidar que leia Viagem
ao Fundo das Consciências (Colibri; 1995) de Maria do Rosário
Pimentel. Se os portugueses puderam até aqui “fechar os olhos” e “fazer
ouvidos moucos” às históricas trapaças portuguesas no Ultramar, eis que com o
acelerar da globalização, com o desnorte português e europeu e com a
progressiva ascensão a potências mundiais do Brasil (onde o movimento negro e
afro-cultural tem peso) e de Angola (onde as chagas da colonização e da guerra
são grandes), a história fará rewind e vir-se-á chapar na nossa cara.
Papá em África
Anton Kennemeyer
25.º volume da MMMNNNRRRG
editado por Tommi
Musturi e Anton Kannemeyer
Posfácio por Marcos
Farrajota e Crizzze
64 p. a cores, capa
dura, álbum A4
ISBN :
978-989-97304-8-9
500 exemplares
PVP: 15,00 €
(50% desconto para
sócios CCC, lojas e jornalistas) já à venda na loja online da CCC e na El Pep, Feira do Livro de
Poesia e BD, Livraria do Simão (escadinhas de s.cristovão, lx), Mundo Fantasma,
Sr. Teste (soc. guilherme coussol) e Bertrand
(Texto e imagens disponibilizados pela editora)
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