Desafio perpétuo
Criar uma situação original e estimulante, não é fácil, mas são inúmeros os casos em que tal acontece. Mas, manter esse interesse e essa capacidade de prender o leitor volume após volume, é muito mais exigente e já são bem menos os casos que o concretizam plenamente. Ao fim de 5 tomos, The Promised Neverland continua a consegui-lo plenamente e é uma das leituras mais desafiantes que neste m omento é possível acompanhar em português.
Recordo a sua base: Grace Fields é um orfanato modelo, onde a responsável - a ‘mamã’ de todos - cuida de meninos e meninas, órfãos ou abandonados pelos seus progenitores. Assemelha-se quase a um pedaço de paraíso, à tal 'terra prometida' que o título genérico refere - embora ele possa apontar também noutro sentido.
Iniciado, assim, como leitura aparentemente delicodoce, a páginas tantas a narrativa de Kaiu Shirai desfere um potente murro na boca do estômago do leitor, quando ele percebe que, na verdade, o orfanato funciona como local de 'engorda' (dos cérebros) das crianças, que ao atingirem determinado nível são (literalmente) servidas como alimento a monstros no exterior do recinto.
A situação, descoberta por acaso pelos três alunos mais velhos - Norma, Ray e Norman -que serão protagonistas - até agora, pelo menos... - leva-os a elaborar um estratagema para fugirem de Grace Fields. São os planos e preparativos que ocupam os volumes #2 a #5.
Alguns dos leitores deste texto que chegaram até aqui, poderão perguntar o que torna tão atractiva a leitura. Para além da originalidade da situação, do contraste (nada religioso) entre "paraíso" e "inferno" (e as doses extremas de mentira e engano associadas) - bem consubstanciada graficamente por Demizu que alterna a imagem 'bonita' das crianças com o visual disforme e aterrador dos seus predadores - a forma como a obra está escrita é o seu grande trunfo.
Para quem já leu (o também provocador) Death Note, posso dizer que, com todas as diferenças temáticas e gráficas, há entre aquela obra de Ohba e Obata e The Promised Neverland mais do que seria expectável. Naquela como nesta, vamos acompanhando os progressos - e os falhanços dos protagonistas - em tempo útil, através da explicação detalhada dos seus raciocínios, do modo como pesam prós e contras, dos esquemas e manobras que criam, sendo mesmo assim capazes de nos surpreender porque o que vemos pensado, por vezes não é o que acontece e nos é mostrado.
Ou seja, para tentar explicar melhor, se muitas vezes o leitor está ao lado das crianças que pretendem fugir, vivendo com elas os diversos momentos, desde a preparação de tudo o necessário até à consumação (?) da fuga, noutras ocasiões descobrimo-nos a acompanhar a 'mamã' e os outros que tentam evitar que ela se concretize. E nessas mudanças de 'posição', vão-se dando mudanças, são introduzidas nuances que alteram profundamente o que esperávamos, o que já dávamos por certo e seguro.
O que fica escrito no parágrafo anterior pressupõe que o leitor entra na cabeça dos vários protagonistas, que vive e sente com eles tudo o que se vai passando. E que, devido a esse factor, sofra com eles, vibre com eles, chore (até) com eles. Porque, neste relato repetidamente entre felicidade extrema e terror palpável, há espaço - e tempo... - para situações extremas, vidas dedicadas, sofrimento, capacidade de auto-entrega, superação das dificuldades, descoberta de forças inimaginadas e, até, de forma dura e radical, numa escalada de violência que nada à partida parecia pressupor, para sacrifício e morte.
E, por tudo isto - ou apesar de tudo isto... - desde o início (aliás!), uma e outra vez somos surpreendido pelas opções tomadas, pelos rumos mudados, pelos desvios aos planos, pelas alterações em curso de rota. E, mais ainda, pelas sucessivas mudanças dos pressupostos supostamente inalteráveis que servem de base a The Promised Neverland, que nunca nos deixam seguros e confiantes em relação a nada.
The Promised
Neverland #4
The Promised
Neverland #5
Kaiu Shirai (argumento)
Posuka Demizu (desenho)
Devir
Portugal, Fevereiro
e Setembro
de 2020
126 x 190 mm, 196 p., pb, capa mole
9,99 €
(imagens disponibilizadas pela Devir; clicar nelas para as apreciar em toda a sua extensão)
Sem comentários:
Enviar um comentário