Cadáveres que teimam em sobreviver
"Nunca mais consegui dormir. Atormentado, não por pesadelos, mas por memórias bem reais que se recusam a desaparecer..."
In Os Filhos de Baba Yaga
Segunda
Guerra Mundial, nas
estepes geladas da Rússia, um grupo de crianças órfãs, sozinhas,
abandonadas,
tentam
sobreviver, numa terra de ninguém, sucessivamente conquistada - ou
perdida - por soviéticos e nazis, a quem as crianças odeiam, embora
nem
a
todos do mesmo modo.
É
esta a base de Os
Filhos de Baba Yaga,
uma edição conjunta da Arte de Autor e de A Seita, com
a
mais recente -
e muito aguardada - proposta
de Luís Louro que, a completar 40 anos de carreira tem aqui o seu
trabalho mais ambicioso, mantendo o desafio crescente - a si e aos leitores - que tem feito nos últimos álbuns.
Para narrar uma história de violência e horror, Louro soube reinventar-se, ajustando o seu traço característico a um relato mais duro e brutal, apostando numa paleta de cores menos vivas e vibrantes, e apresentando-se extremamente contido nos apontamentos de humor e nos apartes brejeiros que são uma das suas imagens de marca e que nas escassas utilizações que faz deles surgem quase deslocados, face ao soturno tom geral.
Mesmo narrativamente, o autor aprofunda caminhos menos usuais na sua obra. Veja-se por exemplo a sequência inicial, em que a aparente lógica de caçador e presa em nome da sobrevivência e até da manutenção do equilíbrio ecológico choca com a dureza das palavras que acompanham a cena, reinterpretando-a. Aliás, é curiosa esta dualidade que Louro introduz uma e outra vez, com a voz do narrador umas vezes alinhada com o que as imagens vão mostrando ao leitor e outras contrastando com elas, o que acaba por reforçar de forma significativa o impacto de uma e outras.
Podendo ser considerada uma alegoria sobre os meninos perdidos de Peter Pan - aqui absolutamente perdidos, a vários níveis, e a caminho da perdição total - este é fundamentalmente um relato trágico sobre a crescente desumanização daquelas crianças, que a guerra transformou em pequenos animais à solta, selvagens, sem coração nem princípios, apostados apenas na sua própria sobrevivência. A qualquer preço.
"Cadáveres que teimam em querer sobreviver", como são definidos a certa altura, aquelas crianças vão passar de pobres vítimas - colaterais - a sanguinários algozes, entre o desenvolvimento natural da maldade humana, o seu condicionamento e potenciamento pelas circunstâncias que vivem e o crescente gosto pelo sangue e pela violência gratuita.
E de cada vez que achamos que os limite do horror já foram atingidos, cena após cena Luís Louro empurra-os, ultrapassa-os, excede os valores, preceitos e regras sociais de modos que até aí consideraríamos impensáveis, transformando cada vez mais aqueles miúdos em verdadeiros filhos do demónio, até à última revelação nas cenas finais, aquela que, sem dúvida, nos fará ter os piores pesadelos.
Os
Filhos de Baba Yaga
Luís
Louro
Arte
de Autor e A Seita
Portugal,
Maio de 2025
235
x 320 mm, 132
p., cor,
capa dura
32,00
€
(versão revista do texto publicado no Jornal de Notícias de 31 de Maio de 2025; imagens disponibilizadas pelo autor; clicar nesta ligação para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)
Sem comentários:
Enviar um comentário