“Precisamos
de perfis ambíguos que abranjam uma larga franja da população… e
temos de os dramatizar de forma a encorajar o seu tratamento
psiquiátrico...”
In
Eu, Louco
“E
o louco sou eu?”, apetece citar, perguntar, repetir, após a
leitura de um livro sobre a normalização da loucura. Ou, melhor,
após a leitura de um livro sobre o enlouquecimento da normalidade.
Vamos
lá tentar explicar, mas cuidado porque o texto pode dizer um pouco mais do que aquilo que desejam saber…
Ángel
Molinos, ex-dramaturgo sem sucesso, acabou a trabalhar numa sucursal
de uma empresa farmacêutica. O seu papel - sim, termo
provocatoriamente adequado - é criar novos perfis psicológicos de
distúrbios mentais que
possam ser catalogados e documentados.
Perturbações
evidentes a
olho nu na nossa sociedade - entendam a ironia - como
neofilia,
a obsessão por tudo o que é novo
ou, em contraste, sempre aconselhável, o misoneísmo,
a rejeição do novo e a permanência no passado.
Ou, ainda, a nomofobia,
a dependência do telemóvel…
Com
um senão, ele - as ordens superiores são essas - baseia-se em
comportamentos normais, quotidianos, massificados num mundo
cada vez mais globalizado, para tornar anormal a normalidade,
para classificar como loucos os que levam uma vida vulgar. O
objectivo? Criar novos medicamentos, novas drogas, que possam
‘tratar’, ‘normalizar’ quem não sabe sequer que está doente
- quem não está sequer doente. A Pfizin, a empresa farmacêutica,
será
grata (?)
pelos (muitos) lucros daí advindos…
Atormentado
por pesadelos, angustiado com o que faz, Ángel vai quebrar no
momento em que um dos seus colegas mais próximos desaparece. A
investigação que vai levar a cabo - para poder denunciar ao mundo o
que a empresa em que trabalha faz - vai mergulhá-lo numa espiral de
(verdadeira) loucura - ou em algo próximo dela - com as intrigas, as
ameaças, os jogos sujos e os truques de bastidores a
multiplicarem-se e a levá-lo a duvidar de si próprio e da sua
sanidade. A
engrossar, afinal, o número daqueles que precisam urgentemente de
uma droga qualquer… Qualquer, mesmo...
Segundo
tomo de A
Trilogia do eu
- depois do (também) muito recomendável Eu,
assassino
(disponível em edição portuguesa da Arte de Autor), uma
reflexão cínica sobre a morte enquanto forma de arte
- este novo livro de Antonio Altarriba - do
mesmo modo argumentista
do
emocionalmente
muito
forte
A
Arte de Voar
e de
A
Asa Quebrada
- é mais um mergulho incómodo e inquietador no âmago do ser
humano, dos seus comportamentos - os naturais e os provocados pelo
meio em que vive - que nos obriga a questionar muito mais do que
queremos - ou estamos dispostos a fazer.
Em
paralelo, há uma denúncia, crua e sem subtilezas - que será tão
exagerada quanto isso? - dos motivos e formas de agir da indústria
farmacêutica, desde há muito uma das mais ricas e poderosas - e,
sim, eu sei, são características que andam (quase?) sempre lado a
lado - devido ao seu controlo sobre a vida e/ou a morte de tantos -
todos nós? - que dependem dos seus produtos.
Graficamente,
o relato foi entregue a Keko, veterano de traço largo e
eficaz e
uso recorrente de fortes contrastes de negro e branco, aqui e ali
salpicados com toques de amarelo forte que destacam ou dão
relevância a pormenores que se assumem importantes, e
lhe conferem, no seu todo, um tom sombrio e lúgubre.
Antonio
Altarriba vai
estar presentes no 30.º Amadora BD, entre
25 e 27 de Outubro, e Keko
entre
os dias 24 e 28 do mesmo mês.
Antonio
Altarriba (argumento)
Keko
(desenho)
Ala
dos Livros
Portugal,
Outubro
de
2019
213
x 275
mm, 136
p., pb+1
cor,
capa dura
22,90
€
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