Quem somos nós?
O que pensamos que somos? O que os outros pensam que somos?
Aquilo que os outros lembram de nós?
Em Ardalén, sem
responder aquelas perguntas, Miguelanxo Prado aponta pistas, levanta hipóteses,
sugere para lá do palpável, numa obra notável sobre a memória e o seu
funcionamento, que urge descobrir (já a seguir).
Terceiro movimento da sua sinfonia marítima – que passa
também por Traço de Giz e De Profundis – Ardalén – nome galego de um vento que sopra do mar [trazendo, para
além do cheiro a maresia, imagens e memórias dessa imensidão salgada que nós,
que habitamos junto a ele, temos necessidade de contemplar e sentir] – tal como
os dois livros atrás referidos, combina de forma magistral o real, o onírico, o
imaginário e o fantástico, com o oceano como pano de fundo e mote, numa
combinação única – e diferente das anteriores.
Passeio pela memória, pelos seus mecanismos, pelas suas
lacunas (e a forma de as preencher), por aquilo que elas mudam (conscientemente
ou não), dourando ou exacerbando, começa com a chegada de Sabela a uma aldeia
galega, pequena e isolada, em busca das origens do avô, Francisco Lamas,
emigrante em Cuba, que nunca conheceu mas de que sempre ouviu falar na sua infância.
Acolhida com desconfiança por quase todos – com hostilidade
palpável mesmo por um dos aldeões – como é timbre das comunidades isoladas, receosas
de tudo que possa de alguma forma fazer oscilar os equilíbrios (quantas vezes
instáveis) estabelecidos, Sabela vai conhecer o velho Fidel, também ele, como Francisco,
antigo marinheiro e emigrante, afectado por uma doença degenerativa, mas de
quem vai ouvir histórias e memórias, capazes de sossegar as suas dúvidas e
trazer de novo alegria à vida dele.
Pelo menos, até fazer uma surpreendente descoberta
relacionada com o velho, que põe em causa tudo o que ele contou - e desconcerta
o leitor.
Dessa forma, aquilo que parecia um romance gráfico a um
tempo evocativo de uma época (o que continua a ser) e retrato de uma realidade
social dos dias de hoje (a desertificação das aldeias, as consequências do
isolamento, a procura das origens) torna-se numa dissertação fantástica
(triplamente fantástica, no tom, na forma e no conteúdo) pelos artifícios da
memória, a consubstanciação de sonhos ou a transposição de vivências ou um
pouco de tudo isto – como resultado da acção do Aradalén…?
Que Prado, com um traço personalizado e expressivo, assente
num belíssimo trabalho de cor directa, de forma recatada, sensível e poética,
transforma em mais uma obra-prima aos quadradinhos que urge descobrir (já
escrevi no início, eu sei, mas acho útil reforçar) num tempo em que o
assoberbado ritmo de vida (que nos impõem), quase sempre torna impossível
parar, olhar o mar, sentir o vento e deixar as memórias – nossas e dos outros –
fluírem, combinarem-se e originarem novas memórias para (re)viver e partilhar.
Ardalén
Miguelanxo Prado
ASA
Portugal, Dezembro de 2013
195 x 265 mm, 256 p., cor,
cartonado
33,00 €
Um boa reflexão por uma excelente BD, de um artista no topo da sua arte. Os jogos de memória são especialmente deliciosos, em toda a obra. Recomenda-se vivamente, sem dúvida.
ResponderEliminarObrigado, SAM.
EliminarA tónica deve ser posta na excelência da obra. E aconselho a (re)leitura conjunta com Traço de Giz e De Profundis, com as quais está inegavelmente ligada.
Boas leituras!
Boa tarde. 33 Euros é muito dinheiro! Mais 10 do que em Espanha. Talvez daqui a 5 anos, se a editora entretanto falir e começar a vender os livros em stock com 50% de desconto, eu arrisque a compra deste (aparentemente) magnífico livro. Obrigado pela atenção. Paulo Martins
ResponderEliminarCaro Paulo Martins,
EliminarÉ muito dinheiro? Sim.
É caro para a edição apresentada (256 páginas a cores, bom papel capa cartonada)? Penso que não.
Vale o que custa? Eu acho que sim.
Será possível dentro de alguns meses comprá-lo mais barato? Possivelmente sim e essa é uma das razões porque a edição de BD está tão mal no nosso país. O leitor sabe que passado pouco tempo pode comprar os livros com descontos significativos e prefere esperar que tal aconteça...
Boas leituras... logo que possível!