07/07/2010

Gaston – Os arquivos do Lagaffe

Franquin (argumento e desenho)
ASA + Público (Portugal, Julho de 2010)
294 x 220 mm, 48 p., cor, brochado com badanas

A 28 de Fevereiro de 1957 anos, nas páginas da revista "Spirou" belga, aparecia pela primeira vez uma estranha personagem, então de casaco e lacinho, sem que ninguém - nem ele próprio - soubesse muito bem porquê. Poucas semanas depois, a sua indumentária mudava para uns jeans uma camisola de gola alta e umas alpercatas, que o acompanhariam toda a vida.
Após algum tempo a vaguear (literalmente) pelas páginas da publicação, Gaston Lagaffe protagonizava os seus primeiros disparates, iniciando uma longa e (justamente) celebrada carreira assente numa preguiça sem igual, numa postura física reveladora da mais entranhada moleza e numa invulgar capacidade de se ocupar com tudo e nada para deixar de lado o realmente urgente. Assim, originou um sem número de inenarráveis acidentes, invenções estrambólicas e ideias disparatadas, que fizeram a vida negra aos seus colegas da redacção da revista - com Fantásio em particular destaque - cujo edifício destruiu várias vezes e tornando-o na personagem mais calamitosa e desajeitada da histórias da banda desenhada, que fez da vida monótona num escritório uma surpresa constante. E, claro, num dos (anti)-heróis mais amados da 9ª arte, a pé ou tripulando o seu Fiat 509, inventando o ininventável ou tocando o ensurdecedor broncofone (antepassado das actualmente mal-amadas vuvuzelas...).
Através dele, Franquin, por natureza introvertido e depressivo, deu largas ao seu génio, através de um humor transbordante e contagiante e de um traço personalizado, vivo, dinâmico e extremamente expressivo, muitas vezes copiado mas nunca igualado.
Várias vezes reeditado (inclusivamente em Portugal, onde começou por se chamar Zacarias…!), imortalizado numa estátua em tamanho natural no centro da Bruxelas que ele atormentou, Gaston Lagaffe viu a sua cidade natal assinalar os seus 50 anos com um mural com mais de 3 metros de altura e um dia sem parcómetros, em homenagem à guerra que ele sempre lhes moveu nas suas aventuras, para desespero do abnegado (e infeliz) agente da lei Longtarin.
E se há período que combina bem com Gaston Lagaffe, é a “silly season” do Verão, em que tudo convida a não fazer nada…! Por isso (, também,) se saúda o início da publicação, hoje, da colecção Gaston – os arquivos do Lagaffe, fruto de parceria da ASA com o jornal Público, que se propõe publicar todas as suas aventuras, segundo a ordem da mais recente colecção francesa, num total de 19 volumes, cujas lombadas formarão uma imagem de Lagaffe.

(Versão revista e aumentada do texto publicado no Jornal de Notícias de 28 de Fevereiro de 2007, a propósito dos 50 anos de Gaston Lagaffe)

06/07/2010

J. Kendall – O Fim?

O comunicado da Mythos Editora surgiu há poucos dias, “curto e directo”: “Comunicamos com muita tristeza que devido às baixas vendas e aos altos custos redacionais e gráficos a revista J. Kendall - Aventuras de uma Criminóloga (Júlia) deixará de ser publicada. A última edição será a nr. 67, Junho de 2010.” A notícia, infelizmente não é surpresa, pois apesar de gozar de boas críticas generalizadas, há muito que este título mensal não atingia o limiar de vendas necessário à sua subsistência. Como, na mesma casa editora, já acontecera com outras séries de qualidade, como Martin Mystère ou Dylan Dog, dois outros títulos provenientes da casa Bonelli. Entretanto, depois deste anúncio, face às reacções surgidas, a Mythos voltou atrás, oferecendo a Júlia, através de uma mensagem do seu editor, Dorival Vítor Lopes, mais um (curto) balão de oxigénio: “Como esperado, o anúncio causou grande clamor entre os leitores e ontem mesmo já recebi umas dez mensagens de desespero e súplicas para que Júlia continue. Como essas manifestações devem continuar e aumentar, resolvemos fazer mais 4 edições e novamente analisar o quadro de vendas. Então, iremos até o nr. 71, pelo menos. Claro que contamos com a divulgação dessas edições de todas as formas possíveis e que os leitores também se manifestem indo à banca de jornal. Muito obrigado por seu constante apoio a Júlia e a todas as publicações Bonelli. Um abraço, Dorival” Sendo verdade que a revista chega às bancas e quiosques portugueses com cerca de 6 meses de atraso – neste momento está disponível a edição #62 -, os portugueses pouco poderão fazer para inverter a situação. Fica, no entanto a informação – até porque J. Kendall – Aventuras de uma criminóloga tem sido presença recorrente em As Leituras do Pedro – para que, pelo menos, aqueles que nunca se decidiram a experimentar a sua leitura, aproveitem esta última (esperemos que não) dezena de números para conhecer a (duplamente) bela criação de Giancarlo Berardi.

05/07/2010

Victor de La Fuente (1927-2010)

Victor de la Fuente, um dos maiores autores espanhóis de quadradinhos, faleceu aos 83 anos.
Natural das Astúrias, onde nasceu em 1927, De La Fuente possuía um grande domínio da planificação e um traço dinâmico e com uma grande capacidade de transmissão de movimento e foi distinguido em 2006 com o Grande Prémio do Salón del Comic de Barcelona.
Numa carreira com quase 70 anos, iniciada ainda nos anos 40 do século passado, quando ainda alternava a BD com a publicidade, De La Fuente começou por trabalhar de forma anónima para os mercados britânico e norte-americano, como tantos desenhadores do seu tempo.
O encontro com o argumentista Victor Mora, em 1967, levá-los-ia a criar “Sunday”, um dos muitos westerns que desenhou, sendo este, sem dúvida, o seu género preferido, embora tenha desenhado (e nalguns casos também escrito) histórias em muitos outros, como o comprovam séries como “Haxtur”, “Anjos de Aço” ou “Mathai-Dor”, adaptações de episódios da História de França (país onde viveu nas últimas quatro décadas) ou versões de cariz religioso como “Le fils de la vierge”, alguns dos quais editados em Portugal, em revista ou em álbum.
“Los Gringos”, com argumento de Jean-Michel Charlier, e “Aliot, le fils dês ténébres“, escrito por Alejandro Jodorowsky, são mais dois títulos da sua bibliografia, onde constam ainda, desde 1992, diversos episódios de Tex Willer, que De La Fuente foi o primeiro estrangeiro a desenhar.
Uma biografia mais extensa deste autor pode ser consultada no Tex Willer Blog.


(Versão revista e aumentada do texto publicado no Jornal de Notícias de 5 de Julho de 2010)

02/07/2010

Entrevista com Nelson Martins


Chama-se Nelson Martins, tem 37 anos, é formado em Design de Comunicação pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e foi co-fundador e sócio da empresa de webdesign Nitrodesign, entre 1998 e 2004. Actualmente ocupa o seu tempo como webdesigner, ilustrador e cartoonista freelancer. E acaba de publicar em França o seu primeiro álbum, Tout sur les célibataires, nas Joker Éditions.

- Como chegaste à banda desenhada?
Nelson Martins -
Em miúdo, ler era para mim uma das actividades mais interessantes, em especial ler BD.
Muitos dos meus amigos da altura partilhavam esse gosto. Como tinha também o gosto pelo desenho, isso acabou naturalmente por levar à BD como forma divertida de criar e contar histórias.

- Porquê a opção por um traço humorístico, algo que é raro em Portugal?
Nelson Martins -
Isso terá sido influência do tipo de BD que sempre preferi ler. Comecei a ler os “clássicos” Patinhas, Astérix, Spirou e apesar de depois ter conhecido estilos mais afastados do humorístico, como Corto Maltese, Moebius (para dar alguns dos exemplos mais conhecidos) e diversos outros mais recentes, o estilo humorístico diverte-me mais e é esse que desenho com mais frequência. Mesmo que essa possa não ser a corrente predominante em Portugal. O género aventura também me agrada, assim como um mix de aventura com humor.

- Tinhas algo publicado anteriormente?
Nelson Martins -
Publiquei durante alguns anos em jornais regionais e suplementos de jornais nacionais, como o DN Jovem e o Correio da Manhã. Na forma de tiras ou de histórias de uma prancha.
Mais recentemente, participei em três séries de tiras de BD semanal para a internet (em co-produção com o Pedro Couto e Santos):
- “Os Especialistas”, para a revista online Digito.pt
- “País dos Sapos”, para o Sapo.pt
- “Os Especialistas”, para o Sapo.pt (canal de tecnologia)
A minha participação em fanzines resume-se a um caso pontual e em termos de álbuns, esta é mesmo a estreia.

- Como surgiu esta oportunidade de editar um álbum em França?
Nelson Martins -
Esta oportunidade, na verdade, resultou da decisão de fazer um álbum de BD, quaisquer que fossem as probabilidades de o publicar.
Os testemunhos de alguns autores e de outras pessoas ligadas à BD em Portugal levavam a crer que publicar em Portugal não era tarefa muito fácil.
De qualquer forma, por volta de 2004 comecei a discutir com um amigo meu dos tempos de faculdade (e também sócio co-fundador da Nitrodesign), o Pedro Couto e Santos, a ideia para um álbum intitulado “Lig e Mandu – os Crápulas da Montanha”, uma história de aventuras com humor à mistura.
Divertia-nos a ideia de fazer um álbum e parecia-nos que, pela diferença de estilo, teria hipóteses de ser publicado. Uma ideia a ir desenvolvendo à medida que a nossa actividade profissional permitisse.
Entre 2006 e 2008 o argumento começou a ser desenvolvido, depois esbocei cerca de 60 páginas e finalizámos algumas. Foi esse projecto que levei ao Festival Internacional de BD de Angouléme, um mercado com mais oportunidades do que o nacional.
No festival contactei uma grande quantidade de editoras e houve algumas respostas mais entusiastas, uma em especial por parte das Éditions Joker. Numa primeira abordagem as editoras avaliam quase exclusivamente o aspecto gráfico do trabalho e foi esse o feedback que recebi, ficando a história dos crápulas da montanha à espera de outro desenvolvimento.
De volta a Portugal recebi desta editora Joker o convite para a produção de 3 pranchas a partir de um argumento existente, a título de teste. A experiência correu bem e o projecto foi-me entregue.
O argumento é da autoria de Valéry Der-Sarkissian, um argumentista francês que se estreia também assim neste álbum.

- Em que moldes trabalhaste com o argumentista?
Nelson Martins -
O Valéry enviou-me o argumento em texto, com algumas indicações em relação ao layout.
O livro é uma sequência de gags humorísticos de uma prancha. Para cada prancha, o argumentista indica a quantidade de vinhetas e para cada vinheta a descrição da cena e os diálogos correspondentes entre os personagens. São indicações e funcionam apenas como tal, porque é necessário por vezes alterar essa planificação para melhor ilustrar o gag.
Para além disso enviou-me uma série de informações adicionais sobre a arquitectura do edifício do Tribunal Administrativo que serve de inspiração para o cenário onde decorrem a maioria dos gags, para definirmos mais solidamente o espaço da história.

- Como foram definidas as personagens?
Nelson Martins -
Em conjunto com o argumento, recebi uma descrição breve dos 6 personagens principais, três homens
(Henri, Philippe e M. Merriot) e 3 mulheres (Océane, Marion e Rani), todos personagens solteiros.
A descrição incluía uma sugestão dos traços físicos e de personalidade de cada um. (Ex: Henri - perdidamente apaixonado pela Marion, trabalha no balcão central de atendimento do Tribunal Administrativo. Lamenta não viver no século XIX.) A interpretação gráfica dos personagens ficou a meu cargo.
À medida que as pranchas vão surgindo, as personalidades de cada personagem vão-se definindo mais um pouco, de forma que desenhar um gag com um ou com outro personagem é diferente.

- Qual a maior dificuldade que tiveste?
Nelson Martins -
O projecto correu sempre bastante bem, incluindo a colaboração com o argumentista com quem estive sempre em contacto e foi sempre o primeiro a receber cada nova prancha.
A maior dificuldade foi mesmo conciliar os projectos de webdesign, que já tinha em curso, com a produção do álbum. Mas, com um trabalho redobrado, sobretudo nos 3 meses anteriores à entrega do álbum, pude acabar no prazo previsto.

- Houve pranchas recusadas ou que tiveste de modificar?
Nelson Martins -
Praticamente todas as pranchas foram aceites sem reservas, havendo apenas uma ou duas com o final ligeiramente alterado para reforçar a “punch-line”. Da capa é que tive de fazer algumas versões diferentes.

- Quanto tempo demorou a desenhar e colorir o álbum?
Nelson Martins -
O álbum teve início em Junho de 2009 e foi terminado em Abril deste ano. No entanto, pelas razões profissionais que referi, só nos últimos 3 meses pude trabalhar a tempo inteiro no álbum.

- Que resumo fazes desta experiência?
Nelson Martins -
A minha intenção inicial era recomeçar a fazer BD e progredir como desenhador e autor. Posso dizer que isso aconteceu; aprendi muito com a experiência sobre a criação de um álbum de BD e notei a evolução ao longo dessa experiência. E mesmo quando o trabalho redobrou na fase final do projecto, iniciar uma nova prancha foi sempre aliciante.
Também pude ver que é possível fazer da banda-desenhada uma actividade mais profissional do que inicialmente pensava, desde que haja o apoio de uma editora.

- Há alguma previsão do álbum vir a ser publicado em Portugal? Gostavas que isso acontecesse?
Nelson Martins -
Não há ainda previsão, mas com o primeiro exemplar em mãos, conto ir apresentar o álbum a algumas editoras portuguesas.
Gostava que o livro fosse publicado em português, a minha língua de origem. Para além disso seria também uma contribuição para o nosso mercado de BD, que precisa de mais actividade para cativar o interesse do público para este género de leitura.

- E agora, o que se segue?
Nelson Martins -
A intenção inicial da Joker é fazer deste livro o primeiro de uma série. No entanto, teremos de esperar para ver a reacção do mercado franco-belga.

- Que ambições tens dentro da BD? Que projectos gostavas de concretizar?
Nelson Martins -
Como já antes pensava e agora pude confirmar, é a prática envolvida nestes projectos maiores de BD que trazem experiência ao autor. Por isso gostaria de continuar a ter projectos do género, que apoiados por uma editora me permitam continuar a fazer BD de forma profissional e não apenas como hobbie.
Na BD e noutras formas de expressão artística, acho que o autor quer sempre evoluir e fazer coisas estimulantes. Gostaria de continuar a fazer BD que me divirta e inspire, assim como a quem a lê. Neste momento, enquanto aguardo a continuação da Joker, penso em formas de retomar a ideia original de “Lig e Mandu, os Crápulas da Montanha”.

(Texto integral da entrevista que serviu de base ao artigo publicado no Jornal de Notícias de 19 de Junho de 2010)

01/07/2010

As Melhores Leituras de Junho

10 pãezinhos - Um dia uma noite (edição de autor), de Fábio Moon e Gabriel Bá (argumento e desenho)

Astroboy #1 (ASA), de Osamu Tezuka (argumento e desenho)

As Tiras Clássicas da Turma da Mônica #5 (Panini Comics), de Maurício de Sousa (argumento e desenho)

Bill Baroud (Fluide Glacial), de Manu Larcenet (argumento e desenho)

Bouncer #5 - O Fascínio das Lobas (ASA), de Jodorowsky (argumento) e Boucq (desenho)

Le poilu (Delcourt), de Olivier De Rességuier (argumento e desenho)

L'impertinence d'un été - première et seconde partie (Dupuis), de Lapière (argumento) e Pellejero (desenho)

Tex - Edição em cores #2 e #3 (Mythos Editora), de Gianluigi Bonelli (argumento) e Aurelio Galleppini (desenho)

Un regard par-dessus l'Épaule (paquet), de Pierre Paquet (argumento) e Tony Sandoval (argumento)

30/06/2010

Tout sur les célibataires

Valéry Der-Sarkissian (argumento)
Nelson Martins (desenho)
Joker Éditions (França, Junho de 2010)
225 x 297 mm, 48 p., cor, cartonado


Resumo

Henri, Philippe, M. Merriot, Océane, Marion e Rani são solteiros em busca de um objectivo (leia-se parceiro/a) para as suas vidas. Mesmo que na prática pareça mais que se esforçam por afastar todos os pretendentes do que por atraí-los.

Desenvolvimento
Tout sur les celibataires é um álbum que vem na esteira de uma longa tradição da banda desenhada franco-belga, que assenta numa estrutura de pranchas auto-conclusivas, de tom humorístico, que giram em torno de um mesmo tema. No caso, os solteiros, um género cada vez mais presente (e cada vez até mais tarde) nas sociedades ocidentais.
A partir de seis protagonistas, colegas de trabalho e amigos/inimigos de estimação, conforme os casos e as situações, explora muitas das temáticas e das formas de vida que lhe estão associadas: o (difícil) estabelecimento de relações, a sedução, a conquista (ou não), as orientações sexuais, os impeditivos para o sucesso amoroso, o (ainda) viver em casa da mamã, a excessiva idealização dos pretendentes, os jantares solitários, as conversas de amigos, os grupos de encontros, speed-dating, etc.
E o argumentista fá-lo com humor, conseguindo diversificar e inovar apesar de aparentemente ter uma galeria de protagonistas limitada e pouca liberdade temática, o que na prática não se verifica, pois a forma como as vai explorando e as diferentes abordagens conduzem a gags diversos, que com frequência obrigam o leitor a (pelo menos) sorrir. Ao mesmo tempo que permitem reflectir e analisar a forma como a sociedade e o estabelecimento de relações tem mudado com os tempos…
Para nós, portugueses, este álbum tem um atractivo extra: marca a estreia profissional de Nelson Martins como desenhador (profissional) de BD, e o mínimo que se pode dizer é que o resultado é prometedor, pois revela um bom domínio da planificação e da cor, um traço vivo, ágil, expressivo e dinâmico, bem adaptado ao conceito e ao estilo em que assenta o álbum, e mesmo com alguns toques de originalidade, como é o caso dos bigodes de alguns dos intervenientes, graficamente bem definidos e distintos, contribuindo de forma concreta para a leitura agradável do álbum.

A reter
- A forma mordaz como é (re)visitado o celibato (forçado…), tão em voga nos nossos dias…
- O traço humorístico de Nelson Martins, estilo raramente cultivado em Portugal.
- O sucesso de mais um autor nacional que fez o seu trabalho de casa e foi à procura de editor, num país onde eles existem…

28/06/2010

Le Poilu

Olivier de Rességuier (argumento e desenho)
Delcourt (França, Junho de 2010)
198 x 263 mm, 176 p., pb, cartonado


Esta é uma rocambolesca história, centrada na figura (cuja sombra ameaçadora está 8uase) sempre omnipresente, embora poucas vezes o vejamos na sua forma física) do Poilu (o barbudo), um misterioso assassino, saqueador, violador e ladrão cuja identidade e aspecto ninguém conhece pois aqueles que o viram não sobreviveram para o descrever. Este meliante, à frente de uma horda de guerreiros selvagens e violentos, engajados à força, impõe a lei do terror e do medo, assolando e incendiando todos os lugares habitados por onde passa.
Esta é também a história de dois vagabundos pouco recomendáveis, um gigante e um anão corcunda, que (por mera coincidência?) parecem seguir ou antecipar os passos do Poilu.
Esta é ainda a história de um estranho amor, entre o único sobrevivente – melhor, entre a cabeça (foi a única parte do corpo que escapou) do único sobrevivente - de um dos massacres do Poilu e uma jovem que, pensando o seu amado morto se tornou freira. Apesar das suas limitações –e de aparentemente o destino operar contra ela – a cabeça, que fala demasiado na opinião de muitos com quem se cruza, não desiste da busca pela sua amada.
Com estas personagens e algumas mais, igualmente estranhas e de difícil classificação, Rességuier constrói uma história a um tempo intrigante e divertida, que combina sonho, poesia e humor com cenas de perseguição, combate e acção, num tom que tem algo de teatral, de certa forma herdado da cena (realmente) passada no teatro, quase a abrir o livro, e assente em textos ricos e bem escritos, que muitas vezes obrigam a uma segunda leitura e cujo sentido absoluto só no final – que reserva (mais) algumas surpresas - se percebe.
Para o sustentar, Rességuier utiliza manchas de diferentes tons de cinzento que compõem as vinhetas preenchidas num traço fino, expressivo e envolvente – que por vezes (veja-se a capa) evoca um emaranhado (piloso…) que, se, é certo, nem sempre privilegia a legibilidade – por vezes é difícil distinguir os intervenientes -, contribui decisivamente para definir a atmosfera onírica e surrealista pretendida e para a originalidade deste relato.

26/06/2010

BD nacional cresce à margem das grandes editoras – Machado-Dias*

- Qual o objectivo do BDjornal?
Machado-Dias - Os principais objectivos do BDjornal foram enunciados logo no editorial do #1 em Abril de 2005: 
a) Chegar às Bibliotecas Municipais através de assinaturas a preços reduzidos, para fazer circular a informação sobre Banda Desenhada por um público mais vasto; 
b) Conseguir a colaboração dos editores de Banda Desenhada, com informação sobre as suas novidades e colocação de publicidade; 
c) Conseguir a adesão dos Festivais e Salões de BD deste país, através de informação a publicar e de publicidade paga dos mesmos e 
d) Conseguir a congregação em torno do projecto, dos homens e mulheres que neste país escrevem sobre Banda Desenhada. Destes quatro grandes objectivos, apenas o último se veio a verificar, mesmo depois de chegarmos à conclusão de que não era possível continuar a pagar aos colaboradores. Do primeiro objectivo ainda se conseguiram assinaturas de trinta e duas Bibliotecas (em cerca de duzentas e tal existentes). 
Dos editores, apenas a Devir contribuiu com alguma publicidade no primeiro ano do BDjornal. Nenhum outro editor (especialmente a Asa) fez alguma vez publicidade no BDjornal. Quanto aos Festivais e Salões, apenas o de Beja manteve sempre um contacto informativo assíduo, porque no que toca a publicidade não se conseguiu qualquer colaboração, dando como resposta às nossas solicitações nesse sentido, a condicionante dos escassos meios de produção – mesmo o Festival de BD da Amadora, que teve sempre publicidade paga em vários meios de comunicação, nunca colocou qualquer anúncio no BDjornal, esquivando-se com o mesmo tipo de resposta. Quanto aos objectivos de conteúdo, foram, desde o início, incluir doses equilibradas de textos de divulgação, de investigação, de crítica, de reportagem, de entrevistas, e com o leque mais abrangente possível de notícias sobre tudo o que se relacionasse com Banda Desenhada (em Portugal e no estrangeiro). 
É claro que a pesquisa de notícias foi a parte que exigiu o maior esforço, sendo notável o trabalho, sobretudo de Clara Botelho – há que dizê-lo – durante três anos e tal, todos os dias, à cata de notícias sobre BD, a procurar confirmações em duas ou três fontes, a traduzi-las e a vertê-las para um português compreensível. Ao perceber que tanto esforço deixava de fazer sentido, dada a profusão de sites e blogues que na internet publicam cada vez mais notícias em catadupa sobre o tema, resolvi reduzir a dose de notícias, a partir do BDj #23 e depois acabar definitivamente com elas a partir do #25. No que diz respeito à publicação de trabalhos em Banda Desenhada, essa nunca foi uma prioridade – não era esse o objectivo do BDjornal – mesmo assim, optei por incluir algumas peças, mais para aligeirar as leituras, do que outra coisa. 
E algumas das bandas desenhadas publicadas no BDjornal, chegaram mesmo ao álbum, apesar de não terem terminado a pré-publicação. Caso de “Sexo, Mentiras e Fotocópias”, de Álvaro, pela Pedranocharco; “Morgana – O Castelo nas Núvens”, de José Abrantes, pela Gailivro e “BRK”, de Filipe Pina e Filipe Andrade, pela Asa. Mas não era uma prioridade porque continuo convencido de que não é viável uma revista de BD em Portugal. A partir da experiência algo frustrante da segunda série das Selecções BD, é notório que uma revista de BD não é viável neste país, simplesmente porque não há público que a sustente. Uma publicação com os conteúdos que apontei atrás, parece-me mais sustentável, embora a paulatina redução da tiragem, me comece a colocar algumas dúvidas. De qualquer modo vou continuar a tentar fazer, pelo menos, duas edições anuais… até ver. Já agora e como curiosidade, vamos ver como se conseguirá aguentar o projecto Zona (quanto a mim, de grande qualidade e com bom potencial de vendas… noutro país qualquer), ou se, como penso, não conseguirá sair da fase fanzinesca de tiragem, aliás como o próprio BDjornal nesta altura. 

- Até onde consegue chegar/que visibilidade tem? 
Machado-Dias - Ao fim de cinco anos, o BDjornal é, apesar da actual reduzida tiragem, conhecido por toda a “tribo” da BD em Portugal e não só. Este não só, refere-se a alguns livreiros com quem contacto por vezes e que, insuspeitadamente e para meu espanto, sabem exactamente do que estou a falar quando falo no BDjornal. E também ao facto de cada vez mais gente no Brasil adquirir o BDj via internet – e já agora, o BDjornal vai estar à venda numa loja do Rio de Janeiro, que adquiriu determinado número de exemplares, pagos antecipadamente (refira-se que em Portugal, apenas a Vilelivros e a Central Comics, durante algum tempo, fizeram compras do BDjornal, pagas antecipadamente). Ou de algumas lojas especializadas da Galiza que, de vez em quando me escrevem emails a perguntar quando sai o próximo BDjornal e para as quais o tenho enviado – só que, o problema das contas com o outro lado da fronteira, acaba por se tornar complicado, inviabilizando uma colaboração permanente. Portanto, com a internet, as coisas chegam longe, muito longe até. Mas o que interessa, de facto, são as vendas, e essas não são, nem de perto nem de longe, o que faziam antever as expectativas. O que me parece é que a persistência pode dar frutos, como o demonstra o caso do Brasil, que é, a meu ver, o grande mercado a explorar, embora não saiba ainda muito bem como.

- Nos moldes actuais, que futuro antevês para a BD nacional?
Machado-Dias - Devo recordar que estes moldes (os actuais), especialmente na questão editorial, têm sido mais ou menos cíclicos. Mas os problemas são mais amplos. Reportando-me a 1993 (ano em que comecei nas lides da edição, nessa altura ainda com fanzines), a Meribérica dominava o mercado e assim continuou até 2002 – ano da morte do seu fundador e proprietário, Telmo Protásio – aguentando-se em estertor por mais um ano. Foram cerca de dez anos, com uma crise editorial forte em 1994/96 de onde nasceram a Polvo, a BaleiAzul, a Pedranocharco, etc… Destas, a BaleiAzul e a Pedranocharco ficariam pelo caminho e a Polvo passaria por um mau bocado. Seguiu-se um crescimento nas edições de BD, em que apareceram mais editoras: Witloof, Círculo de Abuso, Nova Comix (tudo em 2000) e a Booktree, em 2002, com pessoal saído da Meribérica, já em crise profunda. Todas estas editoras desapareceram na voragem da crise editorial de 2005/2006. Com o colapso da Meribérica, a Asa voltou à Banda Desenhada, depois de uma hibernação de quase dez anos no sector e aproveitando o desemprego e o respectivo know haw da ex-responsável editorial daquela editora. Caso um pouco à parte, a brasileira Devir aparece em Portugal em 1996 e constrói um bem recheado catálogo virado para os comics, mas não consegue sobreviver à crise de 2005/2006… até ver. Falta aqui a VitaminaBD, que Pedro Silva (depois de arrumada a casa BDmania) resolve criar em 1999 e que, quanto a mim, é a editora que melhor tem trabalhado, de forma criteriosa na escolha de títulos e com edições pontuais e sustentadas do ponto de vista económico e financeiro. A seguir à crise de 2005/2006 aparecem novas pequenas editoras, a Polvo volta à edição, depois de uma rocambolesca venda de existências em armazém, agora como chancela pessoal de Pedro Brito, tal como a Pedranocharco, agora também como minha chancela pessoal. Surge a Mangaline (editora dedicada à mangá, que apenas editou 2 ou 3 títulos), a MMMNNNRRRG, a ElPep, a Livros de Papel (que depois da zanga José Vilela/Manuel Caldas, deu origem à Bonecos Rebeldes, de José Vilela, e à Libri Impressi, de Manuel Caldas), a Kingpin Comics (agora Kingpin Books), a Plana Press, a QualAlbatroz, etc… Portanto, tudo isto para mostrar que ao desencadear das cíclicas crises económico-financeiras neste país, pelo menos desde 1993, correspondem o encerramento de editoras e, no pico das crises, à criação de novas pequenas editoras. Sendo que em 2005, após o desenvolvimento da impressão digital tornar possíveis pequenas tiragens, fez com que o aparecimento de novos editores, fosse muito superior a 1995. Mas há aqui um factor a reter: a falta de realismo, que levou ao encerramento de algumas editoras, por inundarem o cada vez mais escasso (?) mercado português, com catadupas de títulos, destinados em grande parte ao armazém ou à guilhotina. Refiro-me a casos como a Witloof, e a Devir, por exemplo, que não souberam gerir as doses de títulos editados e acabaram por implodir. De todo este movimento de aparecimento e desaparecimento de editores, resta dizer que ninguém sabe nada do que fizeram, para além do óbvio – os títulos editados. De resto, não são públicos nem os números de tiragens nem os de vendas. Isto, à boa maneira portuguesa, de que “o segredo é a alma do negócio”, contrariamente, por exemplo, ao que acontece em França, onde a ACBD (Associação de Críticos de Banda Desenhada) tem, logo no início de Janeiro de cada ano, um relatório impressionantemente pormenorizado com a quantificação de todos esses dados. É a diferença entre um semi-artesanato e uma verdadeira indústria. Por outro lado também não existem dados de quantificação sobre o público leitor de BD em Portugal. O último relatório da APEL (Associação Portuguesa de Editores e Livreiros), referente a 2005 (sic), aponta que 31,8 % dos leitores portugueses inquiridos (cerca de 2.000) têm em casa livros de Banda Desenhada – que podem ser 1, 5, ou 500… o que torna o relatório irrelevante e ridículo. Quanto aos números de visitantes dos festivais de BD (actualmente só Beja e Amadora), o da Amadora fornece sempre com pompa e circunstância a quantidade de visitantes – sejam eles consumidores de BD ou não –, mas não tem qualquer informação quanto a números de livros vendidos, nem parece sequer interessar-se por essa questão. Mas o de Beja costuma fornecer esses dados – o que ainda não aconteceu este ano –, uma vez que, como optou por um mercado colectivo do Livro, gerido por um único operador, consegue sempre saber quantos livros se venderam. Mas como não se sabe o que se passa na Amadora nesse aspecto e porque é o que tem mais afluência de visitantes, não podemos tirar qualquer conclusão pela via dos Festivais. Navega-se portanto às cegas. Falta referir ainda um outro factor importantíssimo: os livreiros. Sabendo-se que muitas livrarias não aceitam determinado tipo de publicações, ou exigem – como desconto – uma fatia salomónica dos preços de capa (os grandes grupos, actualmente, não aceitam nada que seja inferior a 45%), restam as pequenas livrarias e as especializadas. E estas, além de não serem mais de meia dúzia, estão, a maioria delas a atravessar graves dificuldades. Para ilustrar isto, por exemplo, as livrarias Bulhosa, devolveram o BDjornal #25, com a nota de que “não foi pedido”, e quando os contactei, foram taxativos: além de não ter sido pedido, não aceitam um desconto de menos de 45%. Ora as Bulhosa sempre venderam o BDjornal (e todos os livros Pedranocharco) desde 2006, com descontos de 25% e 30%. Este ano, parece que se uniformizaram, pelas mesmas condições da FNAC e Bertrand. Se a estas percentagens se somarem os habituais 20% cobrados por um distribuidor, os descontos vão para a ordem dos 65%. O que quer dizer que, ou os preços dos livros têm que ser substancialmente aumentados para absorverem aqueles descontos, ou não são colocados nas grandes livrarias, passando a ter muito menos visibilidade e por via disso, muito menos vendas. Só resta pois a venda via internet que, como sabemos, não funciona (ainda?) em Portugal como em outros países. São estes os “moldes actuais” do trinómio editores-livreiros-consumidores, que mexem com a circulação da BD neste país. Antevejo portanto que o futuro da BD em Portugal vá continuar assim por muito tempo, um caminho aos solavancos, com poucos ganhos e muitas perdas, tudo porque não se conseguem quantificar as coisas, impedindo cada editor de ter uma planificação e uma acção em conformidade. Mas, se calhar, nada disto é importante… porque ninguém parece preocupar-se com o assunto e, se toda a gente diz mal destes “moldes actuais”, a verdade é que ninguém faz rigorosamente nada para os modificar. Não falo, propositadamente, do sector primário da banda desenhada: os autores. Porque me parece que não é aí que estão os problemas. Existem neste país autores de banda desenhada em número e qualidade suficientes para alimentar uma verdadeira indústria, desde que sejam publicados e… pagos. Os problemas só começam depois deles. Para terminar, deixo aqui uma ideia – já antiga, diga-se – que, se implementada, poderia vir a ser um princípio de solução para sabermos, pelo menos, “a quantas andamos”. Tratar-se-ia de constituir uma associação, talvez do tipo da ACBD francesa, mas com editores e livreiros especializados (e dos generalistas, os que o quiserem). Tem-se falado algumas vezes de uma associação de autores de Banda Desenhada, apesar de já existir a FECO, mas sinceramente não sei para que serviria. Estou a falar de coisas práticas: contabilizar títulos editados, respectivas tiragens e quantitativos de vendas, abarcando vendas em livrarias generalizadas e especializadas, grandes superfícies, Festivais, Salões e outros eventos e produzir anualmente (logo em Janeiro) um relatório de tudo isto, para ser publicado. Mas não algo como “o estado da BD”, que foi tentado pela Bedeteca de Lisboa em 1999 – com as conclusões algo atabalhoadas a serem publicadas em livro (“Hoje, a BD 1996 a 1999”) – e continuado daí para cá, com os, também atabalhoados “dossiers” anuais, publicados on-line e que não servem para nada.

* Editor da pedranocharco e director do BDjornal

25/06/2010

BD nacional cresce à margem das grandes editoras – Inquérito a Mário Freitas*


- A edição é para ti um projecto pessoal ou surge para suprir uma falta (por parte das “grandes” editoras)?
Mário Freitas -
As minhas edições surgiram inicialmente como forma de editar o meu projecto pessoal, o Super Pig, mas quis o destino que surgisse na altura outro projecto embrionário interessante, o CAOS. Assim, o que se pretendia ser apenas uma breve incursão editorial começou a tornar-se num projecto estruturado e pensado, independentemente da pequena dimensão que assume agora e que dificilmente deixará de assumir, mesmo depois dum grande êxito como A Fórmula da Felicidade. De qualquer forma, a minha missão e a dos meus colaboradores é de produzirmos BD cada vez melhor e cada vez mais profissional, capaz de ombrear com o melhor que é feito pelas editoras mais profissionais e mais capazes.

- Até onde conseguem chegar/que visibilidade têm estas edições (como as tuas)?
Mário Freitas -
Estas edições saem fora da lógica das distribuidoras, a quem interessa apenas editoras maiores com inúmeros títulos em carteira. Nesse sentido, elas chegam às livrarias às quais conseguimos chegar através duma distribuição própria. Mas mesmo esta questão da distribuição, per si, nada resolve. Que interessaria, por exemplo, colocar os livros nas Bertrand, cujas livrarias demonstram um total desinteresse, e mesmo ignorância, na forma como tratam e expõe a BD?

- Nestes moldes, que futuro antevês para a BD nacional?
Mário Freitas -
Um futuro em que continuarão a haver e a aparecer excelentes autores, nomeadamente artistas, e em que os melhores ou mais afortunados conseguirão chegar aos mercados realmente relevantes, como o americano ou o francês. De resto, persistirá sempre uma leva de wanna-bes, has beens e never will bes que teimará em não evoluir, em não crescer e a perpetuar a troca entre si de elogios vácuos e palmadinhas nas costas.

* editor da Kingpin Books

24/06/2010

Astroboy 1

Osamu Tezuka (argumento e desenho)
ASA (Portugal, Junho de 2010)
127 x 182 mm, 224 p., pb, brochada


Resumo
Astroboy é uma das mais famosas criações de Osamu Tezuka (1928-1989), considerado o pai do manga moderno e, sem dúvida, o mais importante autor do género, sendo esta a primeira vez que o autor é publicado no nosso país.
Astroboy, cuja versão cinematográfica estreou há poucas semanas nos nossos cinemas e cujo sucesso da versão animada, em 1963, estaria na origem do grande boom da animação japonesa, é a designação ocidental de um herói criado em 1951 sob o título de Atomu Taishi e um ano mais tarde alterado para Tetsuwan Atomu.
Manga “shônen” (ou seja, direccionado para o público juvenil masculino), de grande longevidade – foi publicado até 1968 - é uma história de ficção-científica que decorre no (então futuro e distante) ano de 2003, num tempo em que máquinas e humanos vivem lado a lado. O protagonista é um poderoso robot, criado por um cientista para substituir o seu filho falecido num desastre de automóvel, mas depois abandonado por não crescer e se desenvolver. Astroboy acaba por tornar-se o herói de Metro City, usando as suas super-capacidades para combater o mal

Desenvolvimento
Para os nossos dias, o tom – e a forma como são abordadas temáticas como a conquista do mundo a colonização da Lua ou a construção de robots a partir de seres vivos - pode parecer algo ingénuo, mas não deixa de ser um prazer ler Tezuka em português e descobrir (algum)as qualidades que fizeram dele um dos grandes autores aos quadradinhos de sempre: o ritmo, originalidade e imprevisibilidade das histórias, a planificação variada e dinâmica…
Apesar do tom aventuroso de Astroboy, Tezuka fez dele um hino à tolerância e à amizade, o que é de alguma forma visível no segundo (e maior) dos relatos incluídos neste tomo, ou não tenha sido o herói imaginado num Japão ainda sob os efeitos da derrota na II Guerra Mundial.
Curioso também é verificar como o seu traço simples – quase apetece escrever infantil – funciona tão bem num registo de ficção-científica como é este, quanto em histórias de outro cariz, sejam lendas, aventuras de acção, policiais ou de crítica social.
Fica o desejo que o “sucesso” desta “trilogia” permita à ASA posteriormente avançar com outros títulos (mais estimulantes) do autor, de temática mais adulta.

A reter
- A edição de Tezuka em português.
- A estreia da ASA na edição de manga japonês.
- A publicação do livro praticamente em simultâneo com a estreia do filme. Parece (e é) lógico, mas tem sido raro em Portugal.

Curiosidade
- As três histórias (completas) contidas neste volume têm introduções – igualmente aos quadradinhos -, protagonizadas pelo próprio Tezuka –posteriores á data original de publicação, que ajudam a perceber o contexto em que foram criadas.
- Este é o primeiro dos três volumes de Astroboy que a ASA tem agendados, devendo os restantes chegar às livrarias em Julho e Agosto.
- A edição portuguesa, de boa qualidade, respeita o sentido de leitura original, ou seja, da direita para a esquerda e do “fim para o princípio” (em relação à forma como geralmente se manuseiam os livros ocidentais).

(Versão revista e aumentada do texto publicado no Jornal de Notícias de 5 de Junho de 2010)

BD nacional cresce à margem das grandes editoras – Inquérito a Osvaldo Medina *

- Publicar em pequenas editoras é uma opção pessoal ou a única alternativa face ao desinteresse por parte das “grandes” editoras?
Osvaldo Medina -
Publicar numa editora pequena foi simplesmente fruto do acaso, ao desenhar o livro «A tua carne é má» , escrito pelo Pep, despertei a atenção do Nuno Duarte e do Mário Freitas que apostaram em mim para “A Fórmula da Felicidade”. Se isto tivesse acontecido com uma editora grande provavelmente faria o mesmo. Mas a verdade é que numa editora grande há um medo terrível em apostar em novos autores - vai vender? Não vai vender? Vale a pena? Não vale? Mais depressa apostam num nome desconhecido americano, japonês ou de outra qualquer nacionalidade - desde que venha de fora de portas - que num nome nacional. A questão é simplesmente esta, não apostam no “prato” da casa! Isto acontece em todos os ramos, porque não neste ramo também? Claro que isto arrasta um sem número de consequências para a BD nacional.

- Até onde conseguem chegar/que visibilidade têm estas edições?
Osvaldo Medina -
A visibilidade é pequena, não vale a pena andarmos com rodeios nesse aspecto. Se a editora é pequena, como é óbvio, não terá os meios para uma grande divulgação. Há as feiras, os salões (quantos, em Portugal, por ano?)e pouco mais. Se conseguirmos um espacito na FNAC não é mau, mas normalmente estas edições ficam num cantito empoeirado sem qualquer destaque, nada que diga “gosta de BD? Venha cá ver isto!!” Não é preciso puxarmos do orgulho nacional e salientar “isto é luso!!” porque na verdade, acho que afasta mais do que chama. Existe um preconceito brutal por parte dos leitores no que diz respeito à BD nacional. A maior parte acha chata e sem piada nenhuma e se calhar não é de todo mentira. Temos que mostrar o produto, sem vergonha, e pedir a opinião das pessoas, dos clientes, dos leitores. Porque se queremos que isto vá a algum lado é assim - temos um produto e queremos passá-lo para as mãos das pessoas - mais nada.
A visibilidade chega, acima de tudo, onde chegam os “carolas” da BD. Quem gosta fala do que gosta a outros “carolas” e a coisa vai passando de boca em boca. Blogues, sites e por aí fora.

- Nestes moldes, que futuro antevês para a BD nacional?
Osvaldo Medina -
Temos cada vez mais pessoas a fazer, cada vez mais e cada vez melhor, temos cada vez mais pessoas a serem editadas fora do país. Isto só pode ser bom! Mas no nosso país não há cultura de BD. As pessoas não lêem - a não ser a ”Maria” e “A Bola” - e não estão habituados a gastar dinheiro em livros. A BD será sempre algo de nicho, para especialistas. A não ser que se chegue às pessoas. Temos que ir atrás delas. O que querem ler? Que tipo de histórias?
Se calhar estou a ir contra as ideias de muitos “artistas” mas, na minha opinião, os artistas morrem de fome e só são reconhecidos a título póstumo.
Neste momento temos uma massa crítica em termos de autores muito boa, que abarca todos os géneros, mas quantos vivem da BD? Nenhum? Um? Porquê? Porque não há leitores suficientes! Não há editoras a apostar! Não há mercado de base, logo não há dinheiro de retorno para os autores que preferem deixar a BD ( ocupa muito tempo) e ir trabalhar noutros meios.

* Desenhador de A Fórmula da Felicidade e Mucha

23/06/2010

BD nacional cresce à margem das grandes editoras – Inquérito João Tércio*


- Publicar em pequenas editoras é uma opção pessoal ou a única alternativa face ao desinteresse por parte das “grandes” editoras?
João Tércio -
É as duas coisas. No meu caso foi com grande satisfação que vi o meu primeiro álbum editado por um amigo, colega e pessoa ligada à BD portuguesa há mais de 20 anos, Pepedelrey. Alguém que sempre acreditou no meu trabalho. Aliás, estou a trabalhar num novo livro com ele mas de momento não posso adiantar pormenores; top secret!
Por outro lado, não sei se tem a ver com o efeito crise, as grandes editoras não mostram grande interesse em apostar em novos autores e preferem por enquanto dedicarem-se a reedições de clássicos e a continuar a trabalhar com os talentos já confirmados. Este ano em Angoulême não vi grandes novidades.

- Até onde conseguem chegar/que visibilidade têm estas edições?
João Tércio -
Tudo depende da capacidade de distribuição... se conseguirmos entrar no mercado brasileiro penso que a BD em língua portuguesa pode crescer muito nos próximos anos. Nos outros mercados temos de pensar em edições bilingues ou trilingues para angariar o máximo número de leitores. Mas mesmo lá fora e em países onde se consome BD como França, Itália, Espanha, o mercado varia muito. E se retirarmos a percentagem maior, que são os comics americanos e a manga japonesa, a fatia que sobra é muito pequena mas muito variável. Hoje quer-se uma BD politicamente correcta, amanhã uma viajem introspectiva de autor, e depois quer-se é erotismo kafkiano, etc...

- Nestes moldes, que futuro antevês para a BD nacional?
João Tércio -
O habitual futuro negro de autor de banda desenhada...
Penso que em Portugal é muito devido à determinação e talento dos autores se tenta revolucionar a 9ª arte, que ao longo dos anos tem sido de alguma maneira menosprezada como uma arte menor. Se esta revolução de vários estilos, cores e feitios chegará a bom porto, só a médio prazo o saberemos. Continuo a sublinhar a importância que o mercado brasileiro pode vir a ter para a BD portuguesa, porque vejo aí uma grande vontade de ler projectos novos em português.

* Autor de Março Anormal

22/06/2010

L’impertinence d’un été – première e seconde parties

Denis Lapière (argumento)
Rúben Pellejero (desenho)
Dupuis (Bélgica, Abril de 2009 e Maio de 2010)
236 x 306 mm, 56 + 56 p., cor, cartonados


Resumo

México, Janeiro de 1942. É noite. O passageiro de um táxi pede ao motorista para parar no meio da rua. Pede-lhe que espere, sai e deposita no chão empedrado um lenço feminino. Volta ao carro e convida o condutor para beber um copo, enquanto lhe conta uma história. A história do fotógrafo norte-americano Edward Weston e da actriz, modelo e fotógrafa italiana Tina Modotti e da sua relação, ao mesmo tempo forte e distante, num país sacudido pela revolução onde sopram os ventos de (todas as) liberdades.

Desenvolvimento
É uma história – uma biografia ficcionada – que ele conta com exactidão mas também parcialidade, com a emoção só possível a quem conviveu de perto com os biografados. Porque o narrador, que suportará o relato ao longo dos dois tomos, é Théo, amigo dos dois amantes. Porque Weston deixou mulher e filhos na pátria para se juntar a Tina e para procurar um sentido para a fotografia, o meio – a arte - que escolheu para expressar os seus sentimentos e visões do mundo, num México conturbado e em plena efervescência, onde revolução rima com liberdade – todas as liberdades – e com arte (todas as artes, com destaque para as dos “muralistas” como Diego Rivera ou Xavier Gerrero).
Por isso, este relato acaba por se desenvolver a três níveis, que se entrecruzam e são indivisíveis. Por um lado, a relação dos dois, propriamente dita, feita de sensualidade, paixão e ciúme pois Tina, mesmo amando Weston, nunca foi mulher de um homem só, e ele, também, está dividido entre a sensual amante e os filhos que deixou (com a mulher) nos EUA.
Depois, o relato tem uma forte componente política, discutida em rodas de amigos, patente no contexto histórico que suporta a narrativa, entre a repressão conservadora e a (tentativa de) explosão do marxismo, passando pela perseguição e repressão do catolicismo, entre ambições pessoais e esperanças colectivas, num boião explosivo em que certos momentos sugerem a utopia de que tudo é possível. Numa época entre o “fim do mundo” causado pela I Guerra Mundial e a sua reconstrução em curso, que muitos acreditavam possível sem todos os defeitos e perigos do anterior.
Finalmente, L’impertinence d’un été é uma longa dissertação sobre arte, sobre o que a motiva e origina, sobre o momento criativo, sobre a insatisfação (que tantas vezes surge) face ao objecto criado, sobre as motivações, os desejos e os objectivos do artista.
Lapiére, com um texto contido mas profundo, em que as palavras têm o peso exacto, muitas vezes dizendo tanto quanto o que deixam intuir, conduz o relato – belo, poético, sentido - de forma equilibrada, aproveitando os momentos passados no tasco onde Théo e Miguel – o condutor de táxi – bebem e conversam – melhor, onde um conta e o outro escuta -, para os saltos temporais necessários à acção propriamente dita, passada cerca de 20 anos antes, no momento em que tudo acontecia.
Théo, o narrador, aliás Théophille Genet, pintor francês, personagem fictício, tem, apesar disso, uma enorme dimensão humana, expressando nas suas palavras, nos seus olhares, nos gestos e tiques, toda a emoção - todas as emoções: paixão, vibração, nostalgia, melancolia, tristeza, saudade… – que viveu (e agora revive). Sentimentos por vezes opostos, é verdade, mas que têm a sua razão de ser pela forma como acaba a história dos dois amantes – cujo reencontro serve apenas para se voltarem a separar – e como acabam, também, todas as ilusões e utopias (por isso são ilusões e utopias…) que foram sendo construídas... Como se tudo não tivesse sido apenas um imenso sonho de verão, que, no entanto, não durou mais do que os dois, três meses estivais, para depois a vida mergulhar nos mais sombrios Outono e Inverno, sem a esperança de uma Primavera que para Weston e Tina nunca chegou…
Quanto a Pellejero, com a sua habitual linha clara, de traço largo e expressivo, servida por cores planas, neste díptico quase sempre de tons mais sombrios, embora aqui e ali a cor expluda em momentos específicos e bem determinados, consegue passar para o desenho – com o desenho –, de forma notável, a carga sentimental inerente à história; veja-se, por exemplo, a belíssima e expressiva sequência de abertura do primeiro tomo ou a descrição da solidão de Weston no final do mesmo.

A reter
- A força e a emoção do relato.
- O traço de Pellejero (de quem, confesso, sou fã, há muitos anos).

Menos conseguido
- Eu sei que os autores demoram o seu tempo a criar e que, comercialmente, a obra funciona melhor assim, mas esta é uma daquelas historias que devia ser contada num só volume, para ser lida de uma só vez.
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