Quem conta “Um Conto de Natal”...
“A Noite de Natal era igual todos os anos (…) Mas as coisas tantas vezes repetidas e as histórias tantas vezes ouvidas pareciam cada ano mais belas e mais misteriosas.”
Sophia de Mello Breyner Andresen in “O Cavaleiro da Dinamarca”
Um Conto de Natal (A Christmas Carol), de Charles Dickens é, possivelmente, uma das histórias que mais adaptações teve, desde a sua publicação original em Dezembro de 1843. O teatro, o cinema, a televisão e a própria banda desenhada, ao longo dos anos apropriaram-se dela e apresentaram-na com novas roupagens.
No que à BD diz respeito, uma das mais famosas será, possivelmente, a que tem assinatura Disney e coloca o Tio Patinhas no papel do protagonista, mas há também (re)visões com Batman e até com zombies...
Mas, apesar disso, ainda há ângulos diferentes para fazer a aproximação ao original de Dickens e este que José-Luis Munuera assina e a Arte de Autor editou em português é exemplo disso, apesar de utilizar o mesmo cenário, na mesma época, que é como quem diz a Londres vitoriana de 1843.
E a premissa base também se mantém: E. Scrooge é um avarento homem de negócios que despreza o Natal e a solidariedade da época festiva. Por isso, é visitado por três fantasmas, correspondentes aos natais passados, presente e futuros, que tentam chamá-lo à razão.
Munuera introduz apenas uma ‘pequena’ alteração: atribui aquele ‘E.’ não a Ebenezer mas sim a Elizabeth, entregando assim o protagonismo a uma mulher, numa opção com algo de anacrónica, que faz desta versão uma defesa da autodeterminação e da igualdade da mulher face ao homem, conseguindo assim ganhar em profundidade e complexidade - e tornando-a ainda mais introspectiva. E vai mais longe pois ela, apesar da visita dos três fantasmas que revelam como um pai que subalternizava as mulheres e um noivo que a queria colocar em casa, fizeram com que se tornasse no que é.
E as mudanças não ficam por aqui, porque apesar da fidelidade ao original, Munuera subverte a (esperada) conclusão, num desafio a Deus e às instituições que por si só justificaria a leitura.
Graficamente Munuera, que já vimos como desenhador de Spirou, destaca-se pelo tratamento que dá aos cenários de uma Londres aparentemente sempre enevoada e soturna, em claro contraste com as personagens que geralmente parecem apenas actuar sobre os fundos, com contornos mais vivos e bem definidos, com destaque para a sensualidade contida da protagonista, que Munuera não explora, mas que poderia ter tornado ainda mais distinto este Conto de Natal.
Um
Conto de Natal
José-Luis
Munuera
Arte
de Autor
Portugal,
Novembro de 2022
210
x 285 mm, 80
p., cor,
capa dura
19,95
€
(versão revista e aumentada do texto publicado no Jornal de Notícias online de 16 de Dezembro de 2022 e na edição em papel do dia seguinte; imagens disponibilizadas pela Arte de Autor; clicar nesta ligação para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)
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