06/12/2021

Tintin no País dos Sovietes - edição a cores

Imperativo ou traição?




Com Portugal a ser o terceiro país fora da zona francófona - depois dos Países Baixos e da Dinamarca - a poder editar a versão colorida de Tintin no País dos Sovietes, impõe-se também aqui a questão: era um imperativo ou é uma traição?
A resposta, não é simples e até pode ser afirmativa em ambos os casos.

Comecemos pela justificação editorial: sem novidades desde Tintin e os Pícaros (1976), as aventuras de Tintin necessitam de serem mediatizadas para continuarem a vender. Não havendo filmes realizados por Spielberg - ou outros grandes nomes do cinema - com regularidade - o ano do lançamento de O Segredo do Licorne registou um recorde absoluto de venda de álbuns a nível mundial - e tendo Hergé negado a continuação da sua personagem após a sua morte, é necessário criar ‘artificialmente’ motivos que promovam a série.

Por isso, a versão original a preto e branco deste álbum foi incluída na colecção regular em 1999, ficando assim, pela primeira vez desde 1930 (!) disponível para o grande público. As versões originais comentadas ou o díptico da Lua em álbum único https://outrasleiturasdopedro.blogspot.com/2019/07/tintin-e-lua.html são exemplos que se podem indicar. A colorização deste álbum, publicada originalmente em 2017, é mais um a juntar à lista.

Editorialmente compreendo que faz todo o sentido. Único álbum que Hergé não redesenhou nem coloriu, Tintin no País dos Sovietes, obra imberbe de um futuro grande autor, não é visualmente atractiva no preto e branco original para a maioria dos leitores (de Tintin… ou não). Por isso, criar uma versão colorida, era uma opção. Limitar a sua proliferação - leia-se edição mundial - também. Torna-a mais rara e apetecível.

A seu favor, há que referir que a aplicação de cor nos originais de Hergé - que não foram feitos a pensar em tal - foi feita por Michel Bareau - lamentavelmente não creditado no álbum - de forma cuidada, com o bom gosto de ser suficientemente distante da cor original dos outros álbuns, para não poder ser confundida. Desta forma, o grande público poderá mais facilmente ser seduzido por uma história que possivelmente não conhece, embora ela continue a sofrer das mesmas limitações em termos narrativos.

Indiscutivelmente, também, a sua existência voltou a chamar a atenção para Hergé e a sua obra maior, o que é sempre positivo.

Feito o que parece um semi-elogio - mas é, mais exactamente, apenas uma constatação de factos - passemos à segunda questão.


Como disse atrás - e é sabido - em vida, Hergé negou a continuidade do seu herói. Mais do que isso, deixou Tintin no País dos Sovietes como único álbum cuja versão original a preto e branco nunca redesenhou nem coloriu. E mais ainda, depois dos cinco mil exemplares da primeira edição, em 1930, só autorizou uma versão de tiragem limitada (500 exemplares), na década de 1960, para oferta a amigos e colaboradores próximos, e permitiu que fosse incluído nos Archives Hergé, no início da década seguinte; esta última, uma edição dirigida para coleccionadores e não para o grande público. Ou seja, era uma obra renegada que, deixem-me interpretar assim, queria que se mantivesse escondida ou, no mínimo, de difícil acesso.

Nesta óptica, já a edição num formato similar ao da colecção regular, em 1999, foi uma traição ao que ele sempre defendeu; traição essa agravada agora pela aplicação da cor.

Cujo sucesso, no entanto, já garantiu igual tratamento à versão original a preto e branco de Tintin no Congo, com o resultado a publicar em França no próximo ano. [Embora neste caso faça bem menos sentido, uma vez que existe no mercado a versão (redesenhada e) colorida que Hergé criou.]


Como os argumentos atrás expostos, assumem um pouco a forma de discussão académica, o que importa na verdade para o leitor de BD tanto quanto para o leitor comum, é que tem disponível uma segunda versão - mais acessível, concedo - da obra fundadora de uma das mais notáveis bandas desenhadas de sempre.

Para os que esperavam a sua análise - que ainda não será desta… - deixo a ligação para saberem 5+1 razões para ler Tintin no País dos Sovietes, primeiro álbum de uma série que em Portugal já vendeu dois milhões de exemplares.


Apresentação

Aproveitando a exposição Hergé, patente na Fundação Calouste Gulbenkian, a ASA promove hoje, naquele local, a partir das 18 horas, uma sessão de lançamento desta versão colorida de Tintin no País dos Sovietes, com uma mesa redonda com a participação de Guilherme de Oliveira Martins, Nuno Saraiva e Eurico de Barros, e moderação de Nuno Galopim.


Nota final

Como complemento deste texto, sugiro a leitura de “Tintin no País dos Sovietes” editado a cores em Portugal, um artigo publicado no Jornal de Notícias online de 27 de Novembro último, uma vez que inclui declarações de Benoît Mouchart, director editorial da Casterman, que estiveram na origem de algumas das afirmações que se encontram acima.


Tintin no País dos Sovietes - edição a cores
Hergé (argumento e desenho)
Michel Bareau (cor)
ASA
Portugal, Novembro de 2021
220 x 295 mm, 144 p., cor, capa dura
17,50


(imagens disponibilizadas pelas Edições ASA; clicar nesta ligação para encontrar mais informação sobre o álbum ou nas imagens aqui mostradas para as aproveitar em toda a sua extensão)

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